domingo, 4 de abril de 2010

Uma flor ao pôr-do-sol

Lentamente, dobrou o joelho, e a mão esticada aproximou-se daquela quase inesperada descoberta. Pegou-lhe, acariciou uma das pétalas e levou-a ao rosto, apreciando o seu aroma. Doce. Suave. Desconhecido. Até à semana anterior, nunca tinha visto semelhante flor. Tal facto não era estranho, até porque não era muito versada na botânica, mas era filha de uma apaixonada por jardinagem, pelo que não era totalmente ignorante no assunto. Estranho era o facto de, desde a semana passada, sempre à hora do pôr-do-sol, uma daquelas flores aparecer no parapeito da sua janela entreaberta, através da qual passava tantas horas a contemplar o mar. E mais estranho ainda porque estava sozinha, e não havia maneira de outra pessoa a colocar ali…

Em redor de um núcleo flamejante, harmonicamente distribuíam-se oito delicadas pétalas amarelas que ao toque pareciam feitas da mais fina das sedas. Tinha quase medo de manuseá-las, como se receasse que se desintegrassem. Pensando sobre isso, achava-se idiota. Qual era o mal que a flor se desintegrasse? Era apenas uma flor. Mas no seu âmago, algo lhe dizia que aquele pequeno ser encerrava qualquer coisa de misterioso. De importante. Que deveria cuidar como se fosse uma parte de si.

Aquelas pequenas descobertas ao pôr-do-sol, já não inesperadas mas quase ansiadas, eram o único momento em todo o seu dia em que a dor amainava. Em que quase conseguia esquecer-se do desespero que cortava o seu ser como uma faca afiada. Dilacerando-a.

Ana tinha sido casada durante quinze anos. Afortunadamente, pensava, conhecera o seu príncipe encantado ainda com dezasseis anos de idade e casou-se com ele após cinco anos de um namoro perturbado pelos obstáculos colocados pelos pais ultraconservadores de ambos. Depois de muitos entraves e proibições que mais nada fizeram do que aumentar a criatividade e os recursos de ambos, acabaram por fugir e casar-se em segredo, como nas mais belas histórias de amor que Ana tão entusiasticamente lia. E passaram quinze anos felizes ao lado um do outro, apesar dos altos e baixos que dão cor a qualquer relação entre um homem e uma mulher. Até à semana anterior.

Ricardo saíra para trabalhar, como habitualmente, num dia em que sabia que teria que fazer serão, até que a edição da revista mensal em que trabalhava fosse terminada e enviada para publicação. Como sempre que assim acontecia, essa era a noite que Ana reservava para si própria, entregando-se aos seus rituais de bem-estar. Um longo banho de imersão com água bem quente. Um copo de vinho tinto, contemplando o mar pela janela do quarto,e o sol a esconder-se para além do purpúreo horizonte. Um jantar despreocupado enroscada no sofá, ao som de uma boa música ou vendo um bom filme. E ir para a cama, sozinha, aguardando adormecida o momento em que Ricardo chegaria e entrelaçaria o seu corpo no dela, adormecendo tranquilo dois ou três segundos depois.

Naquela noite o seu ritual foi cumprido. Mas de madrugada foi acordada pelo estridente retinir do telefone. Ainda meio envolta pelo véu translúcido do sono, atendeu, e enquanto ouvia as palavras “Ricardo”, “acidente” e “hospital”, não conseguia decidir se estava realmente acordada, ou se aquilo fazia parte de um sonho mau. Retomada plenamente a consciência, levantou-se a correr e conduziu o mais depressa para o hospital, apenas para receber a notícia que nunca esperara ouvir. O seu marido não resistira aos danos provocados pelo embate contra um camião. Morrera. E o seu mundo com ele.

Não parecia possível que a vida pudesse continuar como era antes. Parecia impossível que o sol continuasse a despontar todas a madrugadas. Que a chuva continuasse a cair. Que as plantas continuassem a crescer. Tudo isto quando a sua vida estava tão completamente destroçada, quebrada em cacos tão pequenos que nada poderia juntá-los numa distorcida imitação do que já fora.

No dia seguinte, depois do funeral, regressou a casa e deitou-se, disposta a morrer ali, naquela cama que de um momento para o outro se tornara tão grande e tão gelada. Mas o sono tardara em chegar. Parecia impossível dormir, comer, respirar… Nada disso fazia já sentido.

Quando o sol baixava já no horizonte, levantou-se e vagueou pela casa vazia e em silêncio. Descobriu que a irmã lhe deixara comida feita, apesar de Ana ter recusado a sua companhia ou o convite para que fosse uns dias para sua casa. Adorável Margarida…

Percorrendo a casa, com a mão tocava nas coisas que Ricardo tocara apenas dois dias antes, sentia os seus aromas que ainda pairavam pelo ar, acariciava os objectos do marido, como se por magia eles o pudessem trazer de volta. Regressou ao quarto e, mais pelo automatismo do gesto do que pela vontade de o fazer, parou à janela a contemplar o ocaso. Tão absorta estava no seu espírito vazio, que nem reparou que a janela estava entreaberta, embora antes não o estivesse. E entre as portadas, uma flor de pétalas amarelas.

A noite pareceu interminável, mas finalmente adormeceu. No dia seguinte, teve a companhia de uma amiga durante a manhã, mas depois de um frugal almoço, conseguiu finalmente ficar sozinha. Não que não gostasse da companhia, mas partilhar o espaço daquela casa com outra pessoa fazia-a sentir-se a sufocar. Mais uma vez contemplou o pôr-do-sol pela janela do quarto. E mais uma vez uma flor amarela aguardava por ela. E desta vez não lhe passou despercebida. Tal como só naquele momento se deu conta de que outra flor igual estivera naquele sítio no dia anterior, embora já não a tivesse encontrado quando à noite fechou a janela.

Não percebia como era possível aquela flor estar ali. A sua amiga não lhe trouxera flores – aliás, num momento daqueles seria até de mau gosto – e a janela era alta demais para que alguém ali a pudesse ter deixado. Talvez tivesse voado de outro sítio para ali e entrado pela janela. Mas dois dias de seguida?... A dúvida permaneceu, mas não se dedicou a ela mais tempo, porque a dor não lhe permitiu mais do que uns segundos de distracção.

Passaram-se dois, três dias. Uma semana. E todos os dias a mesma flor ao pôr-do-sol. Estava a tornar-se impossível ignorar aquilo. Como é que aparecia tal flor todos os dias no mesmo sítio? Uma flor que desconhecia. Que pura e simplesmente não podia ali estar. Aparecia do nada, e assim que anoitecia, desaparecia sem deixar rasto.

Começava a duvidar da sua sanidade. Tanto mais que as únicas explicações “plausíveis” que lhe surgiam à mente iam beber a todos os fenómenos sobrenaturais cuja existência sempre repudiara de modo tão veemente. O próprio facto de por estas hipóteses como explicação a faziam recear estar a enlouquecer. Mas de que outra modo aquelas flores podiam estar a aparecer ali, senão levadas por uma entidade sobrenatural, um espírito ou coisa assim…?

A resposta a estas questões surgiu-lhe uma noite, num dos muitos sonhos em que se encontrava com o marido. Nele, Ricardo aparecia ao longe, vestido com uns jeans e uma camisola de pólo branca e trazia algo na mão que, ao longe não consegui distinguir. Mas quando ele se aproximou o suficiente, reconheceu a tão desconcertante flor amarela, cujo aroma inundou o ar. Em silêncio, Ricardo sorriu docemente, beijou a flor e poisou-a no parapeito da janela que entretanto se materializara ao seu lado. Feito isto, virou costas e afastou-se devagar. Ana chamou-o. E acordou com o som da sua própria voz a chamá-lo.

Levantou-se da cama e foi até à janela. Nada encontrou lá. Apenas um sonho. Mas dentro de si crescia a vontade de que o que aquele sonho sugeria fosse verdade.
Improvável. Loucura. Nada daquilo podia ser real.
A solidão estava a torná-la em mais uma daquelas mulherzinhas que acreditavam nas tretas que lhes vendiam como verdade, apenas porque eram as verdades que queriam ouvir. Mas a cada dia se preocupava menos com isso. Porque em cada pôr-do-sol, acariciando as pétalas de uma singela flor, se sentia um pouquinho mais perto de quem amava. Um pouco menos só.
Mesmo que não fosse mais do que mera ilusão. Ou mero delírio.
História escrita por mim para a Fábrica de Histórias