sábado, 18 de dezembro de 2010

Inesperadas insanidades

As beatas de cigarros mal fumados amontoam-se pelo passeio, fruto do longo tédio das prostitutas que, de quando em vez, me lançam olhares inquiridores, como que para tentar perceber se serei eu o próximo cliente. Mas eu passo, aparentemente alheio à sua presença. O meu destino é outro.
Caminho no passo incerto de quem, embora consciente do seu destino, não está seguro do rumo que toma, porque nunca percorrido. O que me move? Não sei que nome lhe chamar. Mas talvez uma centelha de luxúria que não quer morrer antes de chegar a ser, nem que seja por breves instantes, algo incandescente e intenso.
Uma miríade de imagens preenche a minha mente, quase me alienando da realidade que me envolve. A cara daquela que procuro, meio estremunhada e assustada por dar de caras comigo numa noite como aquela, provavelmente achando-me um stalker, e os ares receosos das restantes moradoras da residência universitária ao verem um homem bem mais velho que elas a deambular por ali. Mas, sobretudo, vejo-me como o herói de um daqueles filmes que apenas passam uma ou duas vezes em salas de cinema meio perdidas num qualquer recanto da cidade. Uma personagem capaz de cometer os actos mais inesperados apenas pela promessa de fugazes momentos de sensual inconsciência. É assim que me quero ver esta noite. É assim que quero que me vejam.
Alcanço a porta da morada que procuro e, olhando para cima constato, não sem um borbulhar incómodo no estômago, que para encontrar a rapariga que procuro terei que bater de porta em porta num edifício de quatro pisos, porque desconheço a localização exacta do quarto que ela habita. Ao menos não tenho que tocar à campainha, a porta está entreaberta, como num convite a viandantes como eu.
Vou andando por um corredor frio, ladeado por portas de madeira clara, sem qualquer espécie de identificação das suas ocupantes. A inevitabilidade de ter que bater a qualquer uma daquelas portas, tentando encontrar quem procuro, toma conta de mim. Claro que poderia desistir e voltar a sair... Não! Não me voltaria a respeitar se o fizesse!
Dirijo-me para uma porta ao acaso e bato três vezes. Depois de um "é só um momento", aparece uma rapariga loira, quase uma adolescente ainda, certamente sem ter ainda chegado aos 20 anos. Ao contrário do que seria de esperar, olha-me sem o mais pálido vestígio de surpresa, receio ou curiosidade, como se o facto de um desconhecido lhe bater à porta fosse algo de banal na sua vida. Articulo a questão que me levou ali, naquele meu ar despreocupado e casual que oculta todas as inseguranças que me bailam no espírito, como se nunca tivessem existido.
- Boa noite, ando à procura da Laura. Ela estuda na Faculdade de Letras e disse-me que morava nesta residência. Sabes onde a posso encontrar?
- Laura? - respondeu-me uma voz sonolenta, afastando da frente da cara uma longa madeixa de cabelo loiro, que deixava entrever um busto acolhedor - Não estou a ver quem é. Mas aqui neste piso não há nenhuma Laura.
- Ah, ok... Obrigado então. - E viro costas em direcção ao elevador, mesmo antes da rapariga fechar a porta.
Subo ao piso de cima e bato a mais duas portas. Numa delas ninguém me responde. Afinal é Sábado à noite, aquela hora em que é suposto jovens universitárias andarem pelos bares a tentar encontrar parceiros por entre copos de cerveja. Na seguinte alguém me aponta o caminho. O quarto 312, no terceiro piso. É para lá que me dirijo.
À medida que fui batendo de porta em porta, o meu estilo e modo de falar foi ficando cada vez mais confiante, talvez pontuado por um pouco de impertinência ou arrogância que, agora sim, me fazia sentir como um homem para lá dos 30 deambulando por uma residência de jovens universitárias. E eis que me encontro defronte da porta que me indicaram como sendo a de Laura. Abre-me a porta uma pessoa que não reconheço, em pijama e meio despenteada, a quem pergunto por Laura.
- Sim, chamo-a já. - responde-me, enquanto se vira para trás e, encostando a porta, lança um suave "é para ti" para dentro do quarto, de onde emana um cheiro a incenso barato da loja dos chineses.
Ouve-se o restolhar de folhas de papel, uma cadeira a arrastar e, finalmente, é Laura que aparece à porta. Como antes, é o seu ar sem surpresa que me surpreende. Como se ao fim de todos estes dias esperasse a minha presença, nunca premeditada. Como se, ao ter-me informado casualmente que era ali que mirava, na brevíssima conversa que tivéramos antes, nutrisse secretamente o desejo de que ali aparecesse.
- Olá. Deves achar estranho eu aparecer aqui a esta hora, mas lembrei-me que talvez pudessemos sair.
A resposta nem sequer foi hesitante.
- De facto não esperava que aqui viesse. Mas aceito o convite. Se esperar aí um bocadinho, eu mudo de roupa e podemos ir até um café que fica aqui perto.
- Sim, claro eu espero.
Respondendo-me com um breve sorriso, Laura entra no quarto e fecha a porta, enquanto eu observo o corredor, exactamente igual àqueles que percorri nos pisos inferiores.
Conhecera Laura três noites antes, no intervalo de uma sessão de cinema. Frequentemente lá páro, mais para observar as invulgares personagens que por ali passam do que pelos filmes, embora tenha sido naquela sala que assisti aos melhores filmes que já vi até hoje. Laura estava sentada dois assentos à minha esquerda e no intervalo meti conversa com ela, sobre um qualquer aspecto do filme, já nem me lembro bem. Palavra puxa palavra e, meia dúzia de minutos depois, que foi tanto quanto aquela conversa durou, já eu sabia que Laura estudava na Faculdade de Letras, num dos primeiros anos - isso adivinhava-se pelo ar juvenil - e morava numa residência universitária, visto que se encontrava bem longe de casa.
Não era uma rapariga particularmente bonita. Nem a sua conversa era particularmente estimulante. Parecia uma daquela raparigas que ingressara num curso de Letras por falta de competência para algo mais elaborado. Não obstante, qualquer coisa nela deixou uma marca em mim. Talvez o ar sem entusiasmo com que falou de si, como que plenamente consciente e aceitante da falta de interesse que gerava nos outros. Tal e qual aquilo que eu próprio sentia. À saída do cinema apenas nos despedimos com um breve aceno, sem palavras.
Mas dos dias que se seguiram, a ideia de fazer algo totalmente inusitado e procurar a rapariga não abandonou a minha mente. Sabia onde morava e onde estudava. Não seria difícil encontrá-la. Ao pensar nisto, sentia-me como um daqueles homens lúbricos que perseguem jovens Lolitas para satisfazer as suas sensuais fantasias. Embora não fosse esse o meu caso, a verdade é que secretamente agradava-me passar essa imagem de mim próprio. E foi assim que, movido por este rasgo de cinematográfica insanidade, acabei numa residência universitária feminina, numa noite chuvosa de Sábado.
Cerca de 10 minutos depois Laura aparece, vestindo uns jeans bem gastos e sobre eles o cano de umas botas de salto alto que lhe emprestavam um ar sensual. Um casco preto, impermeável e grosso, não deixava adivinhar as formas escondidas por debaixo dele. Avanço na direcção do elevador e ela segue-me, no passo seguro de quem caminha ao lado de um velho conhecido.
Seguimos para um café, na rua de trás, e ali permanecemos até que um empregado sorumbático faz questão de nos mandar embora sem uma palavra, começando a varrer o chão e a arrumar as mesas e as cadeiras à sua volta. Conversámos sobre banalidades, a vida na Universidade (à qual não sou alheio, embora afastado dela há algum tempo), as nossas cidades de origem, o meu trabalho... . Sobre tudo e sobre nada.
- Bem, parece que temos que ir embora - comentei perante a tentativa passivo-agressiva do empregado nos dizer que queria ir embora para casa - deixo-te na residência ou queres ir a outro lado?
- Está a chover, não está muito bom tempo para andar por aí. Mas a verdade é que não me apetece nada voltar. Ainda é cedo.
- Tenho meu carro estacionado ao pé da estação dos comboios. Podemos dar uma volta de carro por aí, até nos lembrarmos de alguma coisa.
- Sim, pode ser.
E assim fizemos. Ao percorrermos de carro as ruas mal iluminadas da parte velha da cidade, vou descobrindo uma Laura bem mais faladora e ansiosa por me agradar do que me tinha parecido à primeira vista. Tratando-me sempre por um reverencial "você", que não faço a mínima questão de eliminar, vai-me relatando os clássicos que leu, as suas personagens preferidas e as análises críticas dos autores com que se foi cruzando, opiniões que são evidentemente meras réplicas do discurso de um qualquer dos seus medíocres professores. Aquela conversa começa a entedira-me profundamente, mas o meu silêncio é interpretado como interesse. E a ladaínha continua.
Como já se adivinhava desde o início da noite, a conversa acaba no meu apartamento, do outro lado do rio. Atravessamos a ponte, os subúrbios desérticos, e lá vamos nós escada acima, para a inevitabilidade da consumação do mais que expectável.
Depois de uma ou duas horas à conversa no sofá, em que o espaço entre nós se vai gradualmente reduzindo por movimentos nada casuais, surge o primeiro toque, o primeiro roçar de pele, que termina no ávido consumir de dois corpos que há muito anseiam o saciar daquela necessidade premente.
Envolto já numa mole languidez, com a pele macia e fresca de Laura encostada à minha, é ela quem resolve a minha dúvida sobre como dar fim a esta noite.
- Está a fazer-se tarde e amanhã tenho que me levantar cedo porque os meus pais vêm visitar-me. Importa-se de me deixar na residência?
- Claro que não! - respondi. començando a levantar-me para procurar as minhas roupas por entre as peças espalhadas no chão. Momentos depois ela segue-me e faz o mesmo.
Menos de três quartos de hora depois paramos à porta da residência, onde Laura se despede de mim com um sorriso e um breve beijo.
- Obrigada pela boleia. E pela noite.
- Sim. - respondo - Não há de quê.
E Laura vira costas e sai do carro, entrando pela porta do edifício sem nunca olhar para trás.
***
Regressado a casa, uma mensagem no meu telemóvel: "Quando quiser...".
Enigmático. Convidativo. Mas não... provavelmente não vou querer!