domingo, 3 de abril de 2011

Menina da lua

Abro os olhos sem saber que horas são. Aliás, este é o meu estado natural. Neste quarto sempre igual, os dias e noites não são mais que remotas miragens que se confundem entre si. O tempo deixou de correr para mim. Alterno entre o sono e a vigília seja de noite ou de dia, como se o meu corpo tivesse abandonado o ritmo do sol e da lua e ganho um ritmo próprio. Afinal, ao fim de nove décadas, já ganhou direito a que nada nem ninguém mande nele…

À minha volta os primeiros sons matutinos começam a ouvir-se. Mulheres velhas que gritam e se debatem porque as levantam das suas camas para mais um banho. Pois, ainda é de madrugada! É a esta hora que começam os banhos. E as auxiliares que tentam realizar este trabalho falam em voz alta, para se fazerem ouvir, alternando entre um tom infantilizador e palavrões rudes quando a frustração vem ao de cima. Uma a uma, vai chegando a vez de cada uma das minhas companheiras. E a minha vez chega também.

Tomei banho ontem, dizem-me, por isso basta-me fazer a higiene matinal. A minha memória já não me devolve imagens de tal, mas sigo as instruções. Em frente ao lavatório, enquanto passo as mãos molhadas pelo rosto e pelo cabelo, olho o espelho e mal reconheço o rosto enrugado e o cabelo totalmente branco que o espelho mostra. Bem, a verdade é que os meus olhos vêem já tão pouco, que dificilmente reconheceria fosse quem fosse. As minhas pernas começam a debater-se com a verticalidade. Tremem como se carregassem um incomensurável peso. Tenho medo de cair e devagar, deixo-me tombar sobre a cadeira de rodas que me levou até ali, para que me levem de volta à cama. Vai começar mais um dia eterno neste lar que de casa nada tem.

Quando finalmente os cuidados terminam e consigo ficar numa posição confortável entre mantas e almofadas, apodera-se de mim a tristeza imensa que há anos me acompanha. Para quê viver assim? Qual o objectivo de ver passar os dias que jamais serão diferentes? Esperar pela morte. É o meu entretém diário. A minha esperança. Porque a anseio mais do que receio. O dia em que finalmente me liberte deste corpo que me trai a cada minuto, deste coração que ameaça parar, destes pulmões que já não me dão o ar que preciso, destas pernas que já não andam, deste olhos que já não vêem… Quero descansar, finalmente.

Dizem que do outro lado encontrarei aqueles que ao longo de tantos anos fui perdendo. Os meus irmãos. O meu pai. O meu adorado marido (há tantos anos que partiu…). A minha mãe, que de há uns tempos para cá ocupa cada vez mais espaço na minha memória. Todos eles esperam por mim. E eu quero revê-los. Tanto…

Há, no entanto, algo que ainda me prende aqui. Que me faz suportar esta vida torturada de ser que de todos depende. A minha família. Antes de partir, quero saber que todos vão ficar bem. Que todos terão a vida organizada e pronta, como merecem. Aí sim posso ceder. Posso perder a batalha e ganhar a guerra. Morrer finalmente. Mas até lá, luto todos os dias por mais um dia de espera até que a vida de todos se componha.

Pela janela o sol já entra, mas o sono regressa. Chega em novelos de consolo. A turvescência dos meus olhos começa a escurecer e os meus cansados músculos a abandonar a rigidez.

E sou novamente uma garota livre que acorda na sua cama, rodeada dos seus irmãos que dormem sossegados à sua volta. Sou a menina de longos cabelos loiros que era há oitenta anos atrás.

Levanto-me ligeira e, pé ante pé para não acordar ninguém, vou até à janela e abro-a. Uma aragem fria faz os meus cabelos esvoaçar. Mas sabe tão bem! Do lado de lá da janela, a lua olha para mim e ilumina-me, como se me convidasse a sair. Como se me dissesse “A minha luz guiar-te-á. Sai para o mundo e descobre-o nas cores da noite!

Muitas vezes a lua me fez este apelo insensato. E eu, sensatamente, de todas as vezes recusei. Mas não quero mais ser sensata, porque hoje sou a menina de dez anos a sonhar com uma mente de noventa. A janela é baixa. Sento-me no parapeito, rodo as pernas para fora e um pequeno salto põe os meus pés em contacto com a terra áspera.

Hoje vou ver o que a noite me mostra e o sol me esconde. Hoje sou uma menina à solta no reino da lua.


Não quero mais acordar…


História fictícia escrita por mim para a Fábrica de Histórias