domingo, 31 de outubro de 2010

A rapariga que sorria para os sonhos

O mar refulgia em tons de doirado à medida que o sol se punha no horizonte. O céu parecia ter sido salpicado por uma explosão de arco-íris. Desde o amarelo dourado a tons rubros e púrpura, pinceladas de cor adornavam a abóbada celeste.
Todos os dias, da torre mais alta da fortaleza, Júlia contemplava este espectáculo, extasiada, como se Deus o tivesse organizado só para dar um pouco de alegria ao seu dia.

Levara o seu dia como todos os outros. Percorrera o castelo de alto a baixo de panos e esfregona e vassoura nas mãos, deixando a brilhar cada milímetro de cada espaço por que passava, mesmo sabendo que todo o seu trabalho seria inútil, pois a velha duquesa sua patroa parecia encontrar sujidade em sítios impossíveis.

Haviam quase vinte anos que, diariamente, com o seu suor fazia brilhar cada lage, cada adorno retorcido do mobiliário secular, cada cristal das dezenas de lustres espalhados pelas divisões. E todos os dias a duquesa tecia duros comentários à rapariga que tanto de sai dava para lhe agradar. Todos os dias calçava as suas luvas brancas e percorria o castelo passando com o dedo aqui e ali e, a cada inspecção, torcia o aquilino nariz num trejeito de desaprovação. “És uma inútil, não fazes nada de jeito!”, “Devia fazer-te comer no chão, para ver se o passas a limpar melhor!”, “Dizes que limpaste o pó destes móveis hoje? És uma mentirosa, há semanas que isto não é limpo!”. A cada inspecção, obrigava a rapariga a fazer todo o trabalho novamente. E se no final da segunda limpeza Júlia não conseguisse uma fungadela apreciativa (nunca um elogio, apenas um trejeito que denunciava um pouco menos de desaprovação) vinha o castigo: em vez de dormir no seu quarto, era obrigada a dormir na estrebaria, junto dos cavalos, sem jantar.

Júlia nascera já naquele castelo, filha de uma cozinheira que, dizia-se, se apaixonara pelo Duque, paixão essa que resultara no nascimento da rapariga. Ambos haviam morrido. Como tal, Júlia tivera que depender da boa vontade dos outros serviçais e da duquesa para permanecer no castelo e não ser enviada para a cidade no continente onde, sozinha, não teria meio de subsistência. Mas, sabendo disto, e secretamente odiando-a por julgá-la fruto da traição do marido, a duquesa fazia questão de tornar todos os dias da sua existência num pesadelo.

Talvez por esta vida agreste, Júlia fosse conhecida por nunca revelar um sorriso. Nunca os seus brancos dentes se haviam revelado. Nunca um trejeito de alegria havia cruzado o seu rosto. Jamais os músculos da sua face se haviam coordenado para que os seus lábios deixasse de ser o U invertido que todos conheciam.

Os únicos momentos de paz vivia-os Júlia ao final do dia, sempre que se conseguia esgueirar para a torre mais alta do castelo, e dali contemplar o mar, o continente que se avistava para lá dele e, do lado oposto, magníficos ocasos. O bulício das pessoas pequeninas lá em baixo davam-lhe a perfeita noção da inutilidade da sua vida, dependente dos caprichos de uma velha despeitada e amarga, presa a um passado que ninguém sabia se de facto existira. Mas esse sentimento de inutilidade, em lugar de a entristecer ainda mais, alimentava a cada dia o seu maior sonho: conseguir dinheiro para fugir do castelo, embarcar num navio para o continente e finalmente alcançar a liberdade. Enquanto não o conseguia, tinha que tentar trabalhar o melhor que conseguia.

Nessa noite, tendo mais uma vez sido posta de castigo, dormiu aninhada na palha na estrebaria, aquecida pelo calor dos animais que, conhecendo-a, a deixavam dormir perto de si. E foi com o pensamento no continente e na vida que teria quando lá chegasse que adormeceu. Foi esta nova vida que povoou os seus sonhos durante toda a noite.

Quem entrasse no estábulo naquele momento sentir-se-ia sem dúvida estarrecido com o brilho que o envolvia. Quem, pé ante pé, tentasse perseguir a sua origem aproximar-se-ia do canto mais recôndito do estábulo, local onde aquela refulgência de prata era mais intensa, quase cegando. Quem persistisse nesta demanda testemunharia um milagre: um delicado sorriso de um brilho sem igual que iluminava a face de Júlia adormecida, sonhando com a vida que nunca tivera, mas sabia que um dia ia alcançar.
História fictícia criada por mim para a Fábrica de Histórias

domingo, 24 de outubro de 2010

Espaço

Sem saber ainda para onde ia, vesti as minhas quase seculares calças de ganga, testemunhas de tantos outros momentos iguais, uma camisola qualquer e os ténis mais confortáveis que encontrei. Noutra ocasião, ter-me-ia preocupado em verificar se as cores combinavam, em colocar uns brincos e adornar o rosto com fiapos de cor. Mas não naquele dia. A necessidade de me expor àquele inesperado sol de inverno gritava imperiosa dentro de mim, tornando insignificante qualquer vaidade que pudesse emergir naquele momento. Saí e enfiei-me dentro do carro, cortando curvas e ignorando sinais vermelhos até chegar à praia que, sem eu me ter dado conta, sempre fora o destino marcado no meu inconsciente para aquele dia de mornas delícias.


Caminhei ao longo da praia, segurando os ténis nas mãos. Sentindo a espuma fria lambendo-me os pés, parecia ter entrado noutra dimensão. Parecia ter deixado o mundo em que habitava todos os dias e ter aterrado num planeta em que apenas a paz existia. Nada me perturbava. Nada de mau existia.

Num recanto da minha mente sabia que outras pessoas passeavam espaçadamente por ali, tal como eu. Mas estava demasiadamente extasiada para que a minha consciência recaísse sobre elas. Apenas existia eu e a natureza ao meu redor.


Era destes momentos, por breves que fossem, que eu extraía energia para voltar a enfrentar os dias de bulício e irritações. Recarregava forças e alvejava o espírito para regressar ao meu mundo como uma nova mulher, capaz de tudo.


Já o fizera antes e já fazia parte de mim. Simplesmente desaparecia do mundo e lá ia eu, ser apenas eu. Deixar de ser mãe, esposa, trabalhadora e ser apenas EU. O ser com o qual apenas eu convivia incessantemente haviam 35 anos.

Precisava daquilo. De estar sozinha, pensar na vida sendo eu a única variável. Libertar-me de todas as cargas que se iam acumulando em cima dos meus ombros. Dos ruídos que ensurdeciam o meu espírito até eu não conseguir ouvir-me.
***
- Onde estiveste?
- Por aí. Precisava de estar sozinha.
- E deixas-me a mim e aos teus filhos sem sequer dizeres onde foste? Sem sabermos se está tudo bem? Significamos assim tão pouco para ti?
- Não. Mas precisava muito de estar sozinha. De me encontrar.
- De te encontrares? A vida que temos aqui, a nossa família, não te faz feliz?
- Não é nada disso. Mas precisava de estar só comigo mesma. Pensar na minha vida, na nossa vida, sem televisões aos berros, crianças a correr, telefones a tocar. Não compreendes? Às vezes temos que estar sozinhos.
- Não, não compreendo. Só vejo que ao agires assim mais parece que não gostas de nós. Que estás infeliz e precisas muito de te livrares de nós. De mim. Isso não é amor. Isso é egoísmo, sabes disso!!!
- Não, não é egoísmo. E o facto de querer estar sozinha nada diz acerca do que sinto pelo meu marido e pelos meus filhos. Apenas diz que eu sou uma pessoa que tem necessidades e que uma delas é, às vezes, estar sozinha!
- Não é o que parece. A última vez que estive casado com alguém e comecei a precisar de estar sozinho, divorciei-me. Estava infeliz e não podia suportar a companhia da minha mulher. Sabes disso, já te contei a história.
- Mas eu não sou tu. Posso amar alguém, estar feliz com alguém e ainda assim precisar de estar sozinha. É assim tão difícil de compreender? É assim tão difícil de perceber que antes de ser tua mulher, mãe dos nossos dois meninos, era já uma pessoa e que continuo a sê-lo?
- A minha mãe sempre disse que um casal feliz é um casal que faz tudo em conjunto. Um casal que não se separa em nenhuma ocasião.
- Talvez por isso ela tivesse sido tão infeliz...?
***
Não me parece que volte a casar-me. Estou cansada de não ser eu para agradar a outro. Mas só o volto a fazer se houver espaço. Para respirar...
História fictícia escrita por mim para a Fábrica de Histórias.