terça-feira, 25 de setembro de 2012

14º Campeonato de Escrita Criativa - Desafio #5


Pensei que tinha visto um caixote. Enquanto passava naquele passo em que o andar e o correr se misturam, já a noite se instalara e as estrelas espreitavam por entre os telhados dos velhos prédios da baixa.
Pensei que tinha visto um caixote. Um enorme caixote de cartão encostado à ombreira da porta de um prédio, bloqueando-a. No meu passo acelerado apenas o vislumbrei num relance. Na verdade a consciência do que vi só se veio a formar momentos depois…
Pensei que tinha visto um simples caixote. Daqueles que os habitantes da cidade, ou um qualquer lojista com uma duvidosa noção de cidadania, abandonam pelas ruas da cidade. Como se o objeto abandonado tivesse a capacidade de ganhar pernas e sair dali pelos próprios meios, sem permanecer no mesmo lugar e assumir a condição de lixo.
Pensei que tinha visto um caixote. Um simples caixote. E ia passando sem olhar. Sem sequer me importar com o que me rodeava, absorta comigo mesma. Mas um reflexo involuntário, daqueles que nos faz olhar para o lado quando algo próximo se mexe, mostrou-me que havia muito mais ali do que um pedaço de cartão prensado. Extraordinariamente os meus olhos cruzaram-se com outro par de olhos, meio escondidos por detrás da beira da caixa. O sobressalto fez o meu passo vacilar e, andando mais devagar, olhei novamente. E agora, mais do que um par de olhos negros, curiosos mas possuidores de uma tristeza profunda, mirava-me um rosto de homem, de pele curtida pelo sol, barba negra e comprida, e cabelos desalinhados. Olhava-me com enfado. Como se eu fosse a milionésima pessoa a passar ali naquela noite e a interromper o seu descanso. Olhava-me como se eu fosse a visita que aparecera tarde e sem avisar. Queria dormir e eu era a intrusa que não o permitia.
Perturbada, desviei o olhar. Retomei o meu passo acelerado. Mas não regressei ao meu mundo interior, onde me encontrava aquando daquele encontro fortuito. Desperta, fui atenta aos vãos de escadas, soleiras de portas, cantos e recantos onde mais pessoas se abrigavam da noite e procuravam refúgio.
Pensei que tinha visto um caixote. Um simples caixote. Mas afinal era a casa onde morava um homem. Um homem que, com um simples olhar me trouxe de volta à realidade. Um simples olhar que me mostrou que, afinal, há mais caixas com homens lá dentro…



sexta-feira, 21 de setembro de 2012

14º Campeonato de Escrita Criativa - Desafio #4


ELA. Pronome pessoal. Terceira pessoa do singular. Para mim a gramática é diferente e a semântica mais sombria: Esclerose Lateral Amiotrófica.

Foi a sentença do médico de semblante pesaroso. Foram as três letras que, juntas, acabaram por me confinar a esta cama da qual jamais sairei. Aos poucos o meu corpo abandona-me e torna-me numa ilha. Uma porção de eu rodeada de mim por todos os lados. Árida e deserta…

Não me resta muito tempo, mas o tempo para mim é agora medido em segundos tão eternos, que fazem com que o pouco seja demasiado.

Resta-me esperar. Recordar. Ouvir. Cheirar. Atentar às mais pequenas variações de luz. Às mais leves brisas. Aos mais suaves sons. Guardá-los para poder levá-los comigo até ao próximo apeadeiro.

E de tudo o que vejo e sinto deste meu terrível trono, há um momento particular, parte dos meus dias infinitos, que quero levar bem juntinho a mim. A janela abre-se pela mão de uma qualquer enfermeira que por aqui passa. As cortinas brancas invadem o quarto, ondulando ao sabor do vento que sopra lá fora e que eu não posso senão imaginar. Uma campainha atroa e corta o ar – está na hora do recreio na escola aqui ao lado. O meu quarto inunda-se de risos e gargalhadas das crianças que brincam felizes, alheias ao consolo que a sua felicidade me traz.

Na meia hora que dura aquele recreio esqueço o meu exílio interior. Sou transportada na brisa para o pátio da escola, onde me encontro rodeada de crianças tagarelas. Pego numa mão pequenina e entro na roda. Rio, canto e rodopio até ficar tonta. Tapo os olhos e conto devagar até que todos se escondam, para depois percorrer cantos e recantos à sua procura. Lanço uma pedra e, ao pé-coxinho, jogo à Macaca. Faço três covas na areia e jogo ao berlinde com os rapazes de joelhos esfolados e rostos manchados de terra e suor. Sento-me no baloiço e impulsiono-me com tanta força que quase dou uma volta completa em torno do seu eixo. Corro só porque sim. Porque posso e não há ninguém que me impeça.

O segundo toque da campainha faz levitar o meu incorpóreo espectro de regresso ao cativeiro. Retorno de espírito leve e alma tranquila. E feliz, porque sei que amanhã, se ainda cá estiver, serei novamente criança no embalo do riso que o vento traz até mim.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

14º Campeonato de Escrita Criativa - Desafio #3


“Chuta!”…”Passa a bola, também quero jogar!!!”…”Remata agora! Boa!”… “Golooooooooooooo”

Sob o luar, três meninos jogam à bola. Três crianças de pedra, centenárias, por quem o tédio passa, mas não a idade. Três meninos cansados da sua imobilidade pétrea. Cansados de serem os guardiões da taça superior da fonte do Rossio. Três meninos que, depois de percorrer a cidade, jogam um último jogo de futebol, antes da magia terminar.

Do alto da fonte observavam o Rossio, apesar de não se conseguirem ver uns aos outros e apenas fugazmente se tocarem. Companheiros seculares. Todos os dias observavam o vai vem dos carros e das pessoas, o deambular dos vagabundos e os percursos erráticos dos turistas, ávidos de levar consigo toda a magnificência daquela praça dentro das suas máquinas fotográficas. Comentavam entre si este ou aquele comportamento mais estranho ou um traje menos usual dos que passavam por ali. E riam com gargalhadas cristalinas de criança. Mas o riso era fugaz, porque o tédio sobrepunha-se a tudo. No fundo de todos eles, fervilhava a inconfessável inveja da liberdade de todos os que os rodeavam…

Até que uma noite, enquanto sonhavam com o que fariam se durante três dias pudessem sair dali, um deles viu uma estrela cadente e pediu um desejo. Liberdade. Por três dias. Fê-lo em voz alta e, mal se calou, o luar incidiu sobre eles e brilhou com uma intensidade invulgar. Aos poucos, começaram a mover-se. Lentamente, por entre rangidos e estalidos, começaram a mover os braços, os pescoços, as pernas... Os outros habitantes da fonte ficaram boquiabertos e sussurravam de espanto. Instantes depois, já os meninos estavam no chão, mirando-se, tocando-se e rindo, ainda sem acreditar no que acontecera. Não podiam perder tempo. Tinham apenas três dias.

Percorreram as ruas da cidade, subiram ao castelo e viram o rio pela primeira vez. Completamente transformados em meninos de carne e osso, fizeram amigos entre as crianças que foram conhecendo, falaram com comerciantes de rua e sem-abrigo, entraram em elétricos e autocarros, viram os aviões no aeroporto, descobriram jardins e lagos e deram de comer aos patos. Passeavam sem rumo pela cidade que agora viam a uma nova escala.

“Deixa a bola, temos que regressar!”, “Venham, rápido, temos que voltar a subir!”, “Vamos!!!”

As férias terminam. Todas as criaturas de pedra de volta à velha fonte. Os três meninos novamente em casa, ainda com o mundo a brilhar nos olhos…



segunda-feira, 3 de setembro de 2012

14º Campeonato de Escrita Criativa - Desafio #2

Passado

«Jonas,
li num dos clássicos que me acompanham em horas melancólicas que “a carruagem do passado não nos leva longe”. E foi na esperança de viajar para longe que te escondi num lugar recôndito.
Encontrei-te novamente quando, mais que escondido no sótão, estavas soterrado por memórias longínquas, que contigo reemergiram e trouxeram de volta angústias que eu pretendia definitivamente mortas.
Percorri com as mãos o teu corpinho outrora macio e o impacto das memórias que foram chegando foi avassalador. Como se cada imperfeição no teu corpo de urso de peluche fosse uma cicatriz da minha infância que jamais sarou…
As manchas descoloridas do teu pelo são vestígio das minhas lágrimas silenciosas, quando, à noite, me escondia e esperava que os gritos furiosos do meu pai e o choro da minha mãe se calassem. Agarrava-me a ti, desejando que me levasses para um mundo de fantasia. Porém apenas sabias ser o meu confidente atento.
Lembro-me dos teus olhos brilhantes, de contas de vidro negras. Mas os botões que estão no seu lugar transportam-me àquele fim de tarde em que o meu pai, novamente ébrio, te atirou contra a parede e me bateu violentamente porque eu, feliz com qualquer insignificância de criança, cantarolava pela casa, incomodando o seu descanso de homem trabalhador.
Mas são os pontos mal costurados que seguram uma perna ao teu corpinho castanho que mais me assombram, ao evocarem aquela fatídica noite, em que o meu pai, não contente com murros e pontapés, ameaçou matar-nos. Em que a minha mãe pegou em mim e fugiu daquele homem cruel. Em que, perseguindo-nos em plena rua, ele me arrebatou dos braços dela e, com esse gesto brusco, arrancou a tua pernita do corpo que eu apertava contra mim. Em que ela foi suportando uma e outra pancada até que a Polícia chegou. Finalmente!
Jonas, aos poucos o tempo foi cobrindo estas feridas com memórias mais felizes. Mas a verdade, meu único amigo de tempos difíceis, é que não consigo conviver com as recordações que me trouxeste de volta. Pertencem ao passado e é lá que devem ficar. É por isso que te escrevo esta carta de despedida, antes de te lançar no oceano. Agradeço-te por todos os desabafos que ouviste e por toda a esperança que o teu mundo de fantasia me trouxe. Mas a tua carruagem viaja rumo a nada. E eu quero rumar para longe do que já foi...»