sexta-feira, 21 de setembro de 2012

14º Campeonato de Escrita Criativa - Desafio #4


ELA. Pronome pessoal. Terceira pessoa do singular. Para mim a gramática é diferente e a semântica mais sombria: Esclerose Lateral Amiotrófica.

Foi a sentença do médico de semblante pesaroso. Foram as três letras que, juntas, acabaram por me confinar a esta cama da qual jamais sairei. Aos poucos o meu corpo abandona-me e torna-me numa ilha. Uma porção de eu rodeada de mim por todos os lados. Árida e deserta…

Não me resta muito tempo, mas o tempo para mim é agora medido em segundos tão eternos, que fazem com que o pouco seja demasiado.

Resta-me esperar. Recordar. Ouvir. Cheirar. Atentar às mais pequenas variações de luz. Às mais leves brisas. Aos mais suaves sons. Guardá-los para poder levá-los comigo até ao próximo apeadeiro.

E de tudo o que vejo e sinto deste meu terrível trono, há um momento particular, parte dos meus dias infinitos, que quero levar bem juntinho a mim. A janela abre-se pela mão de uma qualquer enfermeira que por aqui passa. As cortinas brancas invadem o quarto, ondulando ao sabor do vento que sopra lá fora e que eu não posso senão imaginar. Uma campainha atroa e corta o ar – está na hora do recreio na escola aqui ao lado. O meu quarto inunda-se de risos e gargalhadas das crianças que brincam felizes, alheias ao consolo que a sua felicidade me traz.

Na meia hora que dura aquele recreio esqueço o meu exílio interior. Sou transportada na brisa para o pátio da escola, onde me encontro rodeada de crianças tagarelas. Pego numa mão pequenina e entro na roda. Rio, canto e rodopio até ficar tonta. Tapo os olhos e conto devagar até que todos se escondam, para depois percorrer cantos e recantos à sua procura. Lanço uma pedra e, ao pé-coxinho, jogo à Macaca. Faço três covas na areia e jogo ao berlinde com os rapazes de joelhos esfolados e rostos manchados de terra e suor. Sento-me no baloiço e impulsiono-me com tanta força que quase dou uma volta completa em torno do seu eixo. Corro só porque sim. Porque posso e não há ninguém que me impeça.

O segundo toque da campainha faz levitar o meu incorpóreo espectro de regresso ao cativeiro. Retorno de espírito leve e alma tranquila. E feliz, porque sei que amanhã, se ainda cá estiver, serei novamente criança no embalo do riso que o vento traz até mim.

Sem comentários:

Enviar um comentário