segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Protesto anti-crise

Campeonato Nacional de Escrita Criativa

9ª Jornada

O que é que cozinharia para um inimigo?
(máximo: 400 palavras)


“A cereja no topo do bolo”.
Foi esta expressão, proferida por uma amiga numa qualquer conversa trivial, que deu a Isabel a ideia mais louca da sua vida.
Isabel sempre fora uma mulher pacata, que se contentava com o que a vida lhe dava. Morava com o marido e a filha num pequeno apartamento e sempre se considerara uma mulher feliz. Jamais alguém a ouvira proferir reclamações, queixumes ou críticas à sua sorte ou à vida que levava.
Porém, uma série de acontecimentos nos meses anteriores fez com que Isabel deixasse de conseguir ignorar a metade vazia do copo, que na realidade estava em franca expansão. E não conseguindo ignorá-la, sentia-se na obrigação de tentar remediá-la. Até ao momento sem sucesso. A tranquilidade de sempre desaparecera. A última gota de água transbordara o copo, e não havia como aceitar os últimos eventos sem protestar. E a expressão da sua amiga dera-lhe uma ideia genial.
Começou por preparar um bolo. Um normalíssimo pão-de-ló, delicioso graças à secular receita das suas antepassadas. Sentou culpa ao pensar que o bolo era um desperdício. Talvez os resultados obtidos compensassem os meios…
Depois de cobrir o bolo com uma camada de creme de chocolate, passou à segunda parte da cobertura. A parte central do protesto. Ao seu lado tinha uma enorme quantidade de cerejas cristalizadas. Iria colocar sobre o bolo uma cereja por cada um dos revezes que sofrera no último ano, e que atribuía em grande parte à “crise”. A “crise”, que de tanto ser alardeada, falada, temida, parecia ter-se materializado num pequeno humanóide que cada português trazia às costas, vergando-lhe os ombros.
“Uma cereja por ter perdido parte do meu ordenado. Uma cereja por ter ficado sem o abono de família da minha filha. Uma cereja por o meu marido ter ficado sem emprego. Uma cereja por o meu marido não conseguir encontrar novo trabalho. Uma cereja pelo aumento do preço da electricidade. Uma cereja pelo aumento dos preços dos alimentos…”
E assim continuou, anotando o significado de cada cereja. Quando terminou, a cobertura de chocolate já não se avistava. Apelidou a sua obra de “Bolo do Descontentamento”.
Estava a terminar. Avisara as estações de televisão do que planeava fazer, e elas estariam presentes quando entregasse aquele presente cheio de significado. Faltava apenas um pormenor. A carta que explicaria ao destinatário o significado do seu gesto e de cada cereja.
“Excelentíssimo Senhor Primeiro-Ministro”…

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Paraíso Imaginado

Campeonato Nacional de Escrita Criativa
Desafio #8

Como seria o sítio ideal para viver?
(máximo: 400 palavras)

Chamam-lhe demência. Alzheimer. Eu chamo-lhe paraíso. Libertação.

Depois de 65 anos de privações, trabalho árduo e perdas, encontrei dentro de mim o refúgio almejado. Viajo no tempo e no espaço. Acompanho-me de pessoas que conheci e de fascinantes personagens que nunca antes atravessaram a minha vida. A realidade? Construo-a ao sabor das emoções.

Há mais de dois anos que o tempo que passo no mundo real tem vindo a diminuir. Cada vez tenho mais dificuldade em distinguir a realidade dentro de mim daquela que me impuseram ao internarem-me nesta casa de repouso. Cada vez é mais complicado reconhecer as caras das pessoas outrora familiares, porque no meu espírito bailam outros rostos, que viajam comigo pelos lugares de sonho que percorro levemente, como se pudesse voar.

Quando ocasionalmente salto para fora de mim e me encontro com os meus, reconheço desespero e angústia. Sofro com eles porque não quero ser a fonte da sua dor. Mas a verdade é que não há motivo para pesar. Sou muito mais feliz assim. O oblívio é libertador. O devaneio é celestial. Não compreendem. Vêem apenas um velho inerte sentado numa poltrona.

Aqui à beira mar, vejo as gaivotas que esvoaçam livres e têm comigo animadas conversas estridentes. Sinto a frescura da espuma branca que beija os meus pés descalços, com um marulhar que convida a ficar. Estendo a mão para o lado, que encaixa na mão bem quentinha da minha já não falecida mulher, a Joana. As saudades perderam o sentido. Caminha a meu lado como se nunca tivesse partido. E os seus lábios rosados exibem aquele sorriso de garota que me apaixonaram há tantos anos atrás.

Deambulamos pela areia, até que ao nosso redor já não há praia nem mar. Com um brilhozinho de magia, o mundo em torno de nós dá lugar a uma fresca floresta de altas árvores que sussurram ao sabor do vento. Esquilos irrequietos fogem velozes, assustados com as nossas gargalhadas coloridas. Colho uma perfumada rosa vermelha
e estendo-a à Joana, apenas para poder deleitar-me novamente com o seu sorriso. Sentamo-nos num prado solarengo, por entre flores silvestres que o transformam numa pintura de Monet. Abraçamo-nos e ali ficamos, à espera que mais uma vez a realidade de faz de conta se metamorfoseie e nos transporte para um qualquer sonho inimaginável onde possamos reinventar a felicidade e o amor.

Encontrei o paraíso dentro de mim. Sou feliz.