segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Águas profundas

Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Desafio #6

Liste dez coisas que faria se estivesse impedido de estar ou falar com alguém durante duas semanas. Depois escolha uma e explore-a.
(máximo: 400 palavras)

"Meu amor,
não sei se é dia ou noite, ou quanto tempo passou. Pelo relógio, passaram 12 horas, mas a esta profundidade não é fiável. Já deste pela minha falta. Deves estar aflito…
Tudo aconteceu num ápice. Num momento estou deitada, quase a adormecer. Noutro, vejo o rosto do teu amigo Zé bem perto do meu. Salto da cama, mas ele agarra-me com força e um pano tapa-me a boca e o nariz, sufocando-me. Enquanto perco os sentidos, ouço-o sussurrar. «Não tenhas medo, não te vou fazer mal».
Acordei num filme de ficção científica. Há pouco o Zé explicou-me tudo. Estou aprisionada numa cidade subaquática. A muitos quilómetros de profundidade, longe da luz do sol, milhares de seres apenas meio humanos habitam uma cidade envolvida por uma colossal bolha que mantém o oxigénio no interior. O Zé – o seu verdadeiro nome é impronunciável – é filho do soberano da cidade. Este pretende abdicar do cargo em favor do herdeiro, mas apenas quando este encontrar uma noiva.
Pois, é aqui que eu entro! Ele quer que eu seja a sua noiva. Pelo menos pelas duas semanas que o pai demorará a passar-lhe o trono. Estou presa num jogo de faz de conta. Mesmo que fuja, não chegarei viva à superfície.
Espero. Fiz uma lista do que posso fazer enquanto aqui estou: (1) Visitar a cidade; (2) Conversar com os habitantes; (3) Ler alguns dos livros que há aqui no quarto e conhecer esta cultura; (4) Desenhar um pouco de tudo o que aqui vir; (5) Reunir coisas que possa levar para casa, provando que isto não é um delírio; (6) Escrever um “diário de bordo” desta viagem de maravilhas; (7) Investigar a barreira que isola a cidade – a curiosidade científica não me abandona…; (8) Perceber ligação desta cidade com o nosso mundo; (9) Tentar convencer o Zé a libertar-me – este é o verdadeiro número 1 da lista! ; (10) Escrever-te cartas e contar as minhas aventuras.
Estas cartas são inúteis, não tas posso mandar. Mas fazem-me sentir mais perto de ti. Enganam saudade. Enquanto escrevo, imagino que estás a trabalhar e que a qualquer instante entrarás por aquela porta, abraçar-me-ás e contar-me-ás o teu dia, como numa noite normal. Nestas cartas sou eu que te conto o meu dia, enquanto te imagino à distância de um afago. Meras ilusões. A tábua de salvação da minha sanidade…
Em breve estaremos juntos.
Amo-te.
Carolina."


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Memórias de uma centenária

Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Desafio #5


Recorde o professor mais assustador que já tiveste. Depois imagine como seria um reencontro com ele.
(máximo: 400 palavras)

Neste meu imponente espaço de escola primária quase centenária, já assisti a quase tudo. Vidas que começam e acabam. Encontros e desencontros.
E é a um reencontro que presencio neste momento. É a noite das famílias. Os professores organizam actividades regulares, para que os pais partilhem com os filhos e os docentes este meu espaço que um dia já foi deles também.
A actividade de hoje nasceu do reconhecido talento do professor Vítor, regressado após 22 anos. Apaixonado pelas danças latinas, Vítor organizou uma aula de salsa com pais e filhos.
O auditório está cheio. Na sala, uma mulher, Maria, acompanhada pelo marido e pelo filho, olha fixamente o palco. No seu rosto reconhecimento, dúvida, curiosidade e… qualquer outra emoção que não consigo bem captar…
Abrindo caminho pelo meio da multidão, Vítor escolhe mulheres do público ao acaso. Com movimentos sensuais, pega-lhes na mão e instiga-as a dançar aos quentes ritmos latinos. Chegou a vez de Maria. Esta reconhece-o, mas ainda não percebeu de onde. À medida que a aproximação de Vítor a torna na sua inequívoca escolha, Maria olha para o marido com um ar constrangido. «Lá terá que ser…». A sensação de que conhece aquele homem não cede mas não a impede de se abandonar ao ritmo fluido e voluptuoso da salsa.
As luzes e o ruído abafam o mundo em redor. Apenas Maria e Vítor existem. E é aqui, que Maria o reconhece. É o professor Vítor. O pavor dos seus anos de menina. O homem de régua sempre pronta que, com alcunhas e comentários sarcásticos, humilhava os alunos de óculos, de aparelhos nos dentes, gordos, … . Recorda-o com medo vívido.
E é medo o que ainda sente, enquanto dança nos braços do sensual homem de meia idade. Está demasiadamente aturdida para reagir. O corpo move-se sozinho nas mãos experientes de Vítor, mas o seu rosto tem a expressão de quem encontrou Hannibal Lecter num beco deserto.
A dança termina e, trémula e cambaleante, Maria desce as escadas do palco. O marido elogia-a, mas nem o ouve. Titubeando, pergunta ao filho: «Aquele homem é teu professor?». «Não mãe, ele é o professor dos meninos do 1º ano. ». «Ah! Ele voltou…».
O seu coração continua descompassado. Na sua mente o eco de uma música bem antiga.
“Hey, teachers, leave them kids alone”
***
Mais uma história bizarra para o meu longo livro de memórias…

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Brincar aos Deuses


Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Desafio #4


Escreva sobre um coração que era impossível fazer parar.
(máximo: 400 palavras)



O momento da verdade chegara. Exultava na divisão penumbrenta e húmida a que chamava laboratório.
Chamavam-lhe médico, alquimista, bruxo... dependia do que fizesse e dos resultados que obtivesse. Muitas vezes salvara vidas, usando os conhecimentos de medicina. Muitas vezes ceifara vidas, sem dó nem piedade, a bem daquilo a que chamava a verdade suprema. O conhecimento da vida e da morte. Encarava essas mortes com frieza. Como perdas necessárias. E por isso muitos o viam como um bruxo maléfico.
Justificava as suas acções com a grandiosidade do seu propósito: alcançar a chave da imortalidade. E essa grandiosidade rendia-lhe mais do que ódio e receio. Muitos eram os que tinham fé no seu trabalho. Muitos sonhavam poder vencer as limitações da morte. E esta fé levava-os a ajudarem-no. Forneciam-lhe cobaias humanas, vivas. Prisioneiros, condenados à morte, pobres desesperados iludidos pela promessa de dinheiro. Todos até agora com o mesmo destino. O fracasso. A morte.
Até que chegara o ponto de viragem. Finalmente segurava na sua mão um coração quente, que batia como se nada de diferente tivesse feito até aí.
O corpo da mulher que jazia debaixo das suas mãos, numa marquesa fria de metal, perecera haviam três dias. Tivera o cuidado de o ligar às máquinas que garantiam que o sangue continuava a circular, que o cérebro recebia os fluidos vitais e que todos os órgãos eram preservados. Queria testar o novo método que desenvolvera para retornar o coração humano à sua actividade. Uma combinação de drogas e electroestimulação de certas terminações nervosas, que fora já eficaz em pequenos mamíferos. Mas o verdadeiro teste tinha que ser feito com um coração humano. As particularidades da nossa fisiologia fazia com que muitas vezes o que resultava noutros animais fracassasse em homens e mulheres. Esta era a terceira tentativa. E à terceira é de vez, como diz o povo.
Injectara no corpo sem vida as drogas necessárias. Abrira o peito da mulher e colocara eléctrodos em locais precisamente definidos. Carregara nos botões da máquina de electroestimulação…
Milagre. O órgão inerte ganhou movimento. Um movimento inicialmente tímido, que foi ganhando vigor a cada batida, como se uma confiança renovada nascesse nesta sua inesperada mobilidade. As suas cores rapidamente se tornaram rubras, vivas, à medida que o sangue o banhava novamente. Agora era impossível pará-lo.
Colocou a mão sobre o órgão reanimado. Deslumbramento. Êxtase. Sentia-se Deus.
A imortalidade estava agora ao seu alcance.





terça-feira, 9 de agosto de 2011

A canção do bandido

Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Desafio #3

Escrever um texto que seja exactamente o oposto do famoso ditado "Quem te avisa teu amigo é!". (máximo: 400 palavras)



Luís segurava as cartas na mão transpirada. Mal conseguia esconder o nervosismo. “All In”? “Fold”? Sentia-se numa encruzilhada em que, penduradas de um poste, duas placas indicavam direcções opostas: uma delas dizia “VIDA”. A outra, o oposto. E era mesmo a sua vida que dependia daquela decisão.
Luís entrara no jogo num acto de desespero. Dedicava-se a todo o tipo de negociatas, mais ou menos lícitas, e os mais recentes desaires tinham-no levado a contrair uma dívida exorbitante. E os cobradores eram implacáveis. O dinheiro ou a morte. Foi então que recorreu a Mico, um espanhol com quem já fizera negócios no passado. Apesar do seu ar astuto e discurso bajulador, este homem, com uma rede de contactos mais longa que a grande Muralha da China, ajudara Luís diversas vezes, proporcionando-lhe recursos e apresentando-lhe pessoas essenciais para lucros inesperadamente elevados. De certa forma, incluía-o já na sua lista de amizades, e por isso lhe ligou. E mais uma vez, Mico tinha a solução mágica. O espanhol frequentava mesas de poker clandestinas. Luís mal sabia jogar, mas um esquema brilhante foi urdido pelo companheiro. Conhecia a sala, sabia que havia um espelho através do qual poderiam comunicar, se a disposição dos jogadores fosse favorável. Certificar-se-ia de que tal aconteceria. Mico localizar-se-ia onde pudesse ver o jogo dos restantes elementos. O espelho serviria para lhe passar a informação. A segurança na sala era escassa, não seriam desmascarados. A vitória era certa.
Luís aceitou e até àquele momento perdera apenas um jogo. Já se podia considerar um homem abastado. Mas o valor das apostas era agora astronómico e podia deitar tudo a perder. Segurava quatro valetes. “Four of a kind”. Sabia que era uma boa mão, mas estava longe de ser a melhor. Vislumbrava confiança no rosto dos outros jogadores, todavia não conseguia perceber se faziam bluff. Levantou os olhos e viu Mico pelo espelho. Os seus gestos expressivos e sorriso rasgado não deixavam margem para dúvidas. Vais ganhar. Aposta.
“All In”.
No final do jogo, todos revelaram as suas cartas. Um “Straight Flush” surgiu na mesa. Madalena, a mulher sentada ao seu lado recebeu a avultada quantia de dinheiro da mesa. Luís estava arruinado.
O que Luís nunca chegou a saber foi que aquele sempre fora o desfecho previsto. Madalena era amante de Mico. O seu “amigo” estava milionário.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Instinto

Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Desafio #2

Um erro informático faz com que cerca de 400 pessoas ficam presas num pequeno departamento de uma empresa. Só há uma pequena máquina de snack e bebida.
(máximo: 400 palavras)


Ao fim de 50 dias, jazo no chão do átrio do escritório. As últimas réstias de energia não me permitem mais do que olhar em redor e observar as expressões e ténues movimentos dos meus companheiros de infortúnio. Quase se pode tocar a tensão que paira no ar. Todos observam. Todos se observam. Apenas aguardando o movimento em falso que servirá de desculpa para libertar a torrente de desespero e agressividade acumulados ao longo de todo este tempo.
Dezenas de pessoas amalgamadas num espaço exíguo, iluminado apenas pelas luzes da única fonte de alimento que nos tem mantido. Salvação e perdição, sob uma aura de neóns.


Insidiosa, sedutora, obscena. A serpente que incita a dar o passo em falso que trará o fim.
Há 50 dias que as portas de segurança se encerraram e perdemos o contacto com o exterior. Há 50 dias que 400 almas por aqui vagueiam, na esperança de um resgate. Há 50 dias apenas alimentados por uma pequena máquina de snacks e bebidas.

No início do cativeiro acidental, quando uma calma racionalidade ainda subsistia, criou-se uma comissão liderada por um ex-militar, que estabeleceu critérios para racionar os alimentos da máquina. Primeiro os mais doentes, os mais fracos. Só depois os restantes. Mas éramos 400. Rapidamente os mais fortes viraram os mais fracos e os mais resistentes os mais subnutridos. E a revolta começou. Os genes egoístas sobrepuseram-se. O instinto de sobrevivência passou a ser a voz que gritava acima de qualquer lógica. E as suas primeiras vítimas foram o nosso fortuito líder e a sua comissão. A chacina foi inevitável. O primeiro dos muitos assassinatos que se seguiram. À medida que a comida escasseava, qualquer tilintar de moeda ou movimento na direcção da máquina era interpretado como uma tentativa dissimulada de obter comida. E qualquer desconfiança deste género equivale aqui a uma sentença de morte. Os cadáveres amontoam-se.

Olho em redor. Nos olhares que me rodeiam, o desespero, a angústia, a esperança que se desvanece. A agressividade que começa a esvair-se com a energia que soçobra. Já ninguém se atreve a mirar o último chocolate que persiste na máquina. Sombras necrófagas começam a nascer no olhar de quem contempla a porta por detrás da qual os cadáveres foram depositados.

O silêncio para lá do nosso acidental sarcófago quebra-se. Uma batida, duas, três!!!! Salvação? Dizem que a fome extrema causa alucinações…