quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Memórias de uma centenária

Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Desafio #5


Recorde o professor mais assustador que já tiveste. Depois imagine como seria um reencontro com ele.
(máximo: 400 palavras)

Neste meu imponente espaço de escola primária quase centenária, já assisti a quase tudo. Vidas que começam e acabam. Encontros e desencontros.
E é a um reencontro que presencio neste momento. É a noite das famílias. Os professores organizam actividades regulares, para que os pais partilhem com os filhos e os docentes este meu espaço que um dia já foi deles também.
A actividade de hoje nasceu do reconhecido talento do professor Vítor, regressado após 22 anos. Apaixonado pelas danças latinas, Vítor organizou uma aula de salsa com pais e filhos.
O auditório está cheio. Na sala, uma mulher, Maria, acompanhada pelo marido e pelo filho, olha fixamente o palco. No seu rosto reconhecimento, dúvida, curiosidade e… qualquer outra emoção que não consigo bem captar…
Abrindo caminho pelo meio da multidão, Vítor escolhe mulheres do público ao acaso. Com movimentos sensuais, pega-lhes na mão e instiga-as a dançar aos quentes ritmos latinos. Chegou a vez de Maria. Esta reconhece-o, mas ainda não percebeu de onde. À medida que a aproximação de Vítor a torna na sua inequívoca escolha, Maria olha para o marido com um ar constrangido. «Lá terá que ser…». A sensação de que conhece aquele homem não cede mas não a impede de se abandonar ao ritmo fluido e voluptuoso da salsa.
As luzes e o ruído abafam o mundo em redor. Apenas Maria e Vítor existem. E é aqui, que Maria o reconhece. É o professor Vítor. O pavor dos seus anos de menina. O homem de régua sempre pronta que, com alcunhas e comentários sarcásticos, humilhava os alunos de óculos, de aparelhos nos dentes, gordos, … . Recorda-o com medo vívido.
E é medo o que ainda sente, enquanto dança nos braços do sensual homem de meia idade. Está demasiadamente aturdida para reagir. O corpo move-se sozinho nas mãos experientes de Vítor, mas o seu rosto tem a expressão de quem encontrou Hannibal Lecter num beco deserto.
A dança termina e, trémula e cambaleante, Maria desce as escadas do palco. O marido elogia-a, mas nem o ouve. Titubeando, pergunta ao filho: «Aquele homem é teu professor?». «Não mãe, ele é o professor dos meninos do 1º ano. ». «Ah! Ele voltou…».
O seu coração continua descompassado. Na sua mente o eco de uma música bem antiga.
“Hey, teachers, leave them kids alone”
***
Mais uma história bizarra para o meu longo livro de memórias…

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