quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Passageiro Branco

« (...) com todo o meu amor,
Jorge.

P.S.: Passei a carta toda a andar às voltas, e não consegui dizer-te o que queria. Talvez por medo de te desiludir. Talvez por recear não estar à altura das tuas expectativas. Mas há algo sobre mim que deves saber. Não serei um bom filho se não te contar quem verdadeiramente sou, minha mãe.
Sempre me ensinaste tudo o que é necessário para sobreviver neste mundo cruel e agressivo. Ensinaste-me a lutar. Ensinaste-me que os fins justificam os meios. Ensinaste-me que o bom guerreiro não olha a meios para ganhar as suas batalhas. E assim fiz, desde cedo. Assim que o pai me ensinou a conduzir, tinha eu 16 anos, comecei a tentar comprar um carro. Mas era impossível. Mesmo com alguns trabalhos de Verão, nunca conseguiria o dinheiro necessário para comprar um carro bem velho. Foi aí que comecei a perceber o que me ensinavas. Com um amigo, o Carlos, percorria as ruas da cidade durante a noite e, sempre que encontrávamos um carro que nos agradava, abríamo-lo e ligávamo-lo. E corríamos pelas estradas a grandes velocidades até a gasolina acabar. No sítio onde estivéssemos, recorrendo ao mesmo procedimento, regressávamos. Muitas vezes tarde demais para as aulas, mas essa era a última das nossas preocupações. Nunca soubeste para onde eu ia, mas também nunca te mostraste sequer curiosa. A ti bastava-te que eu fosse às aulas e passasse todos os anos. E assim fui fazendo.
Uns anos mais tarde, quando conheci um homem capaz de modificar um carro até que ele ficasse irreconhecível, não deixei o carro em que passara a noite anterior. Era o meu carro de sonho. E, a troco de uns favores, esse homem mudou todo o carro, conseguiu documentos e uma matrícula nova e – magia! – assim tive o meu primeiro carro.
Nem me perguntaste como o conseguira. Apenas disseste. “É lindo filho! Como tu. Mas tem cuidado com o que fazes. O bom guerreiro não se deixa apanhar!”. Desconcertado, ainda tentei que me explicasses o que querias dizer, mas nada mais disseste. Ficou a certeza de que sabias como tinha arranjado o carro. E de que não reprovavas os meus meios.
Fiquei, portanto, a dever favores àquele homem, que nada se inibia em mos cobrar. Começou com pequenos roubos, depois assaltos maiores, até ao dia em que me pediu para matar um homem. Por esta altura já tinham decorrido anos desde o meu primeiro carro, que entretanto já substituíra várias vezes.
Sentia-me preso por aquele homem que me chantageava constantemente. Sentia um dever de gratidão e pagava com tudo o que me pedia. Mas nunca consegui fazê-lo sem pensar que aquelas pessoas a quem roubava eram inocentes e não mereciam o que lhes estava a fazer. Sim, eram inocentes, eu sabia-o porque era ele quem mo dizia. Tentava arrancar esta culpa dentro de mim. Afinal, o bom guerreiro não olha a meios para alcançar a vitória. Eram estas tuas palavras que silenciavam os gritos cada vez mais altos da minha consciência.
Mas quando ele me mandou matar um homem, apenas porque lhe devia meia dúzia de contos depois de um jogo de póker, achei que era demais. A partir dali, o que mais me pediria ele? Ficaria dependente dele pelo resto da vida? Que vida seria a minha, então? Matei, sim, um homem nessa altura, mas foi o meu chantagista e não o seu devedor.
Liberdade. Vitória. “O guerreiro que vence não olha aos meios que usa!”.
Continuei a estudar, mas levava uma vida paralela. Tinha que arranjar dinheiro para responder às nossas necessidades. O meu carro. A casa nova com que tanto sonhavas. A viagem que a mana queria fazer à Disney. Precisava de dinheiro. Com tudo o que aprendera naqueles anos com aquele homem, consegui dinheiro para tudo isto.
Porém, a cada dia que passava, as tuas palavras deixavam de ser suficientes para calar aquela voz que agora berrava constantemente. A minha consciência. O meu “passageiro branco”, que me tentava puxar das trevas do mundo em que me estava a afundar, numa urgência de alcançar riquezas que, apesar de supérfluas, ocupavam todas as minhas aspirações. Como se a minha culpa se tivesse materializado num qualquer ente ebúrneo que, de mão estendida, me tentava resgatar para o caminho da luz.
Um dia passei por um mendigo que gritava, numa voz enrouquecida de aguardente “Ajudar um pobre é comprar um lugar no céu! Ajudem-me por favor.” Ao ouvi-lo, sabia qual seria o destino de qualquer dinheiro que lhe pudesse ser dado. Álcool. Mas ainda assim, a promessa daquele lugar no céu enchia o meu coração de esperança. O alívio para a minha consciência de guerreiro vitorioso! Dirigi-me ao homem e convidei-o para jantar numa tasca ali perto. No final da refeição, deixei-lhe o meu casaco, para o proteger do gélido vento de Inverno. E o sorriso que vi no seu rosto aqueceu-me a alma. Por uns dias a culpa saiu de cima dos meus ombros e fui novamente livre.
Mãe, a minha vida estava perante uma encruzilhada. Podia aproveitar aquela sensação deliciosa e começar uma vida nova. E voltava a viver naquela barraca a que chamávamos casa? Abdicava de tudo o que tinha conquistado? Nem pensar. Então não era eu um guerreiro? Não devia eu zelar pela felicidade da minha família? Quando o dinheiro começou a escassear, a resposta surgiu por si só. “Um guerreiro não olha a meios…”.
Mãe, sei que querias ter um filho bravo, corajoso e sem receios. Uma alma sólida que perseguisse a sua missão e os seus objectivos, sem culpa nem fraquezas. Tentei ser esse homem, mas não consegui. Falhei. Ganhei todas as batalhas. E para isso roubei, enganei, menti… matei. Mas a fraqueza fazia parte de mim. Aquele “passageiro branco” dentro de mim teimava em falar alto. Em fazer-se ouvir.
Podia ter recorrido ao álcool, como o pai fez tantas vezes para fugir aos problemas. Quem sabe ébrio conseguisse não ouvir os gritos persistentes da minha consciência. Mas não. Não depois do que senti depois do episódio do mendigo. Por isso, tempos a tempos, encontrava alguém e dava, secretamente, parte do meu dinheiro e dos meus bens para o ajudar. Famílias à beira do colapso. Pessoas em pobreza extrema. Crianças abandonadas. Volta e meia escolhia, de modo meio aleatório, uma pessoa e assim embriagava aquela voz que tanto me doía na alma.
Hoje mãe, tenho sucesso. O teu guerreiro lutou e venceu todas as suas vitórias, sem nunca ter sido apanhado. Muitas vezes a polícia tentou chegar a mim, mas sem sucesso. Tive bons mestres. A minha empresa é afamada e continua a crescer. Nem vale a pena pensarmos em como é que esse sucesso é garantido. Ambos sabemos que “o bom guerreiro não olha a meios!”. Mas a minha fraqueza permanece. Desculpa mãe. Não te quero desiludir mas este sou eu. E já não são só pessoas que tento ajudar. São associações de caridade e instituições humanitárias também. Hoje chama-se a isso “responsabilidade social”. Que nome pomposo para aquilo que faço desde tão novo: calar este meu “passageiro branco”, que não deixa o seu guerreiro afundar-se nas trevas.
Já é tarde para apagar tudo o que fiz para ganhar as minhas batalhas. As nossas batalhas. Mas, mãe, por favor diz que me aceitas como eu sou. Quem sabe assim, mesmo não apagando o passado, eu possa reescrever o meu futuro. Um futuro em que brilhe finalmente a luz… »
História de ficção escrita por mim para a "Fábrica de Histórias"

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A Bruxa do Metro

“És diferente. Amo-te exactamente como és!”. Foram estas as palavras do meu marido quando lhe contei sobre o meu “dom”. São estas as palavras que ele faz questão de honrar e demonstrar a cada dia que passa. O que faz dele o meu pilar de força, quando o mundo parece abater-se sobre os meus ombros. Uso esta palavra – “dom” - apenas por não saber que outra coisa chamar a esta peculiaridade que trago comigo desde o dia em que fiz doze anos de idade.
Foi nesse dia que, ao sair à rua, percebi que repentinamente, a minha visão mudara. De repente, não via apenas as pessoas que passavam. Em frente a cada uma delas, estendia-se como que uma tela translúcida, na qual se podiam ver outros cenários, pessoas, objectos que nada tinham a ver com a realidade que nos circundava. Como se nessa tela estivesse a ser projectado um filme em que a personagem principal era a pessoa que eu via por detrás dela. Aterrorizada, sem perceber o que se passava, corri para casa e tranquei-me no quarto, a chorar. Estaria a enlouquecer? O que era aquilo?
Foi a minha mãe que, depois de me acalmar, explicou o que se passava. Chamou-lhe um “dom” que percorria a nossa família desde os seus primórdios ancestrais. De duas em duas gerações nascia na nossa família uma criança com uma visão especial, capaz de ler os sonhos e desejos mais íntimos de cada pessoa. As cenas que eu via naquelas telas apenas visíveis para mim não eram mais do que representações dos sonhos das pessoas a quem as telas pertenciam. Os seus mais íntimos desejos e sonhos. Utopias para seres com vidas convencionais. A minha avó fora a última portadora daquele dom.
Vi-me de repente transformada num ser diferente. Uma aberração. Sempre que olhava em volta, telas e telas, sonhos e sonhos. Duas realidades sobrepostas apareciam sempre em simultâneo diante dos meus olhos. A realidade exterior e a realidade dos sonhos.
Acabei por me habituar a tudo aquilo. Aliás, ao fim de um tempo, conhecer os sonhos mais íntimos de quem me rodeava acabou mesmo por me divertir. Esta é uma capacidade perigosa quando posta à disposição de uma adolescente sem consciência das suas implicações. Naturalmente que a minha popularidade entre os colegas do liceu não beneficiou de tudo aquilo. Sobretudo quando os segredos deste e daquele começaram a ser revelados por mim sem dó nem piedade nem qualquer espécie de subtileza, apenas para meu divertimento. Não tardou que me apelidassem de “bruxa” e me pusessem de parte.
Felizmente a idade traz maturidade. E a maturidade ajuda-nos a ver o que nos rodeia de outra forma. Não, não perdi o meu dom. Mas aos poucos comecei a entendê-lo de outra forma. Saber os sonhos dos outros, por si só, valia de pouco. Se aquela capacidade nascera em mim, algum propósito teria que ter. Concretizar esses sonhos! Ajudar quem os tinha a alcançá-los. Com dezasseis anos, foi esta a missão que me atribuí a mim mesma. À medida que passava pelas pessoas na rua, abordava-as, falava-lhes dos seus sonhos e de como eu achava que deveriam proceder para alcançá-los. As reacções foram predominantemente negativas. Muitos repeliam as minhas visões dos seus sonhos, como se não fossem verdadeiras. Outros mostravam-se profundamente incomodados com a minha intrusão no mais íntimo de si. Outros ainda, não reconheciam qualquer legitimidade aos conselhos de uma adolescente que não conheciam.
Desanimada, confusa em sem rumo, desisti deste projecto. Fiquei à deriva sem perceber que sentido fazer de tudo o que eu era.
Mais uma vez, foi a minha mãe que me indicou o rumo. Num final de tarde em que me sentava junto à janela, reflectindo sobre tudo isto, ela apareceu junto de mim com um embrulho de papel pardo, acastanhado pelo tempo, enlaçado por uma fita de cetim azul já meio desbotado. Pertencera à minha avó, que incumbira a minha mãe, antes de morrer, de passar ao próximo portador do dom quando achasse que a hora era apropriada. E assim fez a minha mãe. Vendo-me triste e sem rumo, considerou que aquele era o momento.
Abri o embrulho para me deparar com um velho livro de capa de pele castanha, sem qualquer inscrição ou título. Os cantos e bordos gastos denunciavam a idade daquele volume, tal como as páginas frágeis e amarelecidas que se me abriram à medida que o desfolhava. Aquele livro percorria a minha família há incontáveis gerações. Aparentemente, um antepassado nosso debatera-se com o mesmo dilema que eu e encontrara no mundo do oculto as respostas às suas questões.
Parecia um livro de receitas. Mas estas eram receitas muito peculiares. Para cada sonho era indicada, passo a passo, uma ou mais formas de o concretizar. Encantamentos, feitiços e mezinhas. De um modo geral, todos os encantamentos apresentados funcionavam da mesma maneira. Era necessário, depois de identificar o sonho da pessoa a quem queria ajudar, obter qualquer coisa dessa pessoa – um fio de cabelo, uma fibra da sua roupa, um lenço, um jornal que tenha lido, uma moeda. Com este objecto, e concentrando-me no sonho que me era conhecido, passava ao encantamento, que variava de acordo com o tipo de sonho: jogar o objecto no mar, queimá-lo, expô-lo ao luar. As possibilidades eram inúmeras.
Afinal os meus colegas de liceu tinham razão: eu estava prestes a transformar-me numa “bruxa”. Deitei imediatamente mãos à obra. Depois de ler o livro, explorar todos os encantamentos e as anotações que foram sendo feitas pelos sucessores do seu autor, comecei a colocá-los em prática até que deixei de precisar de olhar o livro para os executar.
Desde essa altura, em paralelo com esta face mais obscura da minha existência, desenvolvi uma “vida normal”. Prossegui os estudos e hoje sou advogada. Na faculdade conheci o amor da minha vida, e já nos casámos há dois anos. É no caminho para o escritório, no centro da cidade, que escolho as pessoas cujos sonhos realizarei. É de madrugada, no metro, quando os passageiros ensonados não cortaram ainda totalmente o seu laço com o mundo dos sonhos, que melhor consigo perceber o que desejam. O que anseiam. Visto que a essa hora o metro é uma gigante lata de sardinhas, é sem dificuldade que consigo obter os objectos necessários para os encantamentos sem ser notada.
Os resultados apenas posso intuir ou interpretar pelas alterações de comportamento daquelas pessoas. Ou deixam de aparecer no metro. Ou aparecem um dia com um enorme sorriso que não conseguem disfarçar. Ou começam a mostrar alterações subtis na roupa, no andar, no modo como erguem a cabeça para enfrentar o mundo. Só eu percebo essas alterações porque só eu sei o que se passou.
Nunca ninguém chega a saber a origem da concretização dos seus sonhos. As minhas acções passam totalmente despercebidas, porque ninguém pode sequer imaginar que são possíveis. Mas isso pouco importa. A gratidão que me pudessem demonstrar seria totalmente desnecessária. Basta-me saber que fiz alguém feliz. Altruísmo? Não! É apenas uma necessidade premente criada por uma peculiaridade hereditária que me transformou, acidentalmente, numa bruxa.
História de ficção escrita por mim para a Fábrica de Histórias

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Asas

Tudo começou com uma dor nas costas. Como sempre fui praticante de desporto, pensei que fosse apenas o meu corpo a acusar excesso de esforço (o que, diga-se, seria bem provável). Ignorei-a. Mas com o passar do tempo, a dor não desapareceu. Pelo contrário, foi crescendo gradualmente, até ser impossível ignorá-la. Tomou conta de mim insidiosamente. Num tenebroso crescendo. Deixei de conseguir encostar-me ao sofá, de praticar desporto, de domir à noite. Até que respirar se tornou um acto de puro sacrifício.
Impunha-se uma ida ao médico. Que ficou estupefacto com o que viu. Sem nenhuma explicação razoável, na radiografia viam-se duas massas ósseas imediatamente abaixo das omoplatas, simétricas, uma de cada lado da coluna. Ninguém conseguia imaginar do que tratasse. Depois de muitos exames, a origem do meu estranho mal era desconhecida. E ninguém conseguiu imaginar melhor tratamento para além de medicamentos para as dores. Que não resultaram.
As dores eram insuportáveis. Já nem conseguia sair de casa. Andava de um lado para o outro, porque nem sentada nem de pé conseguia encontrar uma posição em que as dores fosse menores. Os medicamentos atordoavam-me, mas nem assim aquela dor me abandonava.
Numa dessas minhas deambulações pela casa, ao passar em frente ao espelho notei pela visão periférica algo estranho no meu perfil. Dei um passo atrás e fiquei atónita. Através da camisola de pijama, justa, notava-se uma protuberância. Exactamente no sítio onde a dor me atacava. Exactamente no sítio onde se viam as tais formações ósseas no RX. Virei-me de costas para o espelho e espreitei por cima do ombro. Não era uma protuberância, mas duas. Simétricas. Entrei em pânico. Gritei. Estava a ficar deformada por algo desconhecido que nascera dentro de mim. Como seria a minha vida a partir dali? Não haveria mais desporto, não haveria mais passagens de modelos nem sessões de fotografias, que haviam sido o meu sustento até aí. Era o fim de minha vida. Gritei até não ter mais voz.
Não estava ninguém em casa. Ninguém me ouviu.
Os dias e semanas que se seguiram surgem enevoados na minha memória. Entre medicamentos para as dores, comprimidos para dormir e tranquilizantes, usei de tudo a que conseguia jogar a mão para atenuar a dor e me esquecer das minhas recém aparecidas deformidades. Poucos foram os momentos de lucidez que tive nesses tempos, porque poucas são as imagens que guardo deles. Dores lancinantes, à mistura com uma angústia profunda por achar que jamais voltaria a ser como dantes. E, claro, uma ou outra amedrontada mirada ao espelho, apenas para confirmar que a minha deformidade crescia a cada dia que passava.
Deixei de comer, deixei de sair da cama. Já só aguardava o momento em que a morte me livraria deste tormento.
Até que esta manhã, quando acordei, me apercebi que mesmo sem ter tomado qualquer
medicação, as dores haviam desaparecido. Deitada de lado, na cama, senti um peso diferente nas costas, que parecia tentar unir-me com o colchão. Reparei nos farrapos brancos da minha camisola espalhados pela cama. Teria sido eu a rasgá-la? Não me recordava de tal.
Virei-me de barriga para baixo, e com as mãos empurrei o meu corpo para cima. Nada doía. Apenas aquele peso desconfortável, agora em cima de mim. Num movimento rápido, tirei as pernas para fora da cama e, pela primeira vez em semanas, pousei os pés no chão. Parei um pouco, a sentir o frio do chão a entrar pela pele, como se a mostrar-me que estava viva, apesar de ter desejado não o estar durante tanto tempo. Finalmente, ergui-me, desajeitadamente porque aquele peso estranho teimava em puxar-me para trás. Em desequilibrar o meu centro de gravidade.
Foi quando me virei em direcção à porta do quarto, que notei algo de diferente. Um vulto ao meu lado virou-se num movimento síncrono com o meu e, imediatamente a seguir, o candeeiro da mesa de cabeceira foi derrubado e estilhaçou-se no chão. Assustada, olhei em volta e os meus olhos recaíram sobre o espelho. E só aí percebi o que se passava.
Duas enormes asas irrompiam das minhas costas. Enormes estruturas de osso, que transpareciam por entre a membrana translúcida de pele que as revestiam. Semelhantes às asas de um morcego, de um gigante morcego, estas asas partiam das minhas costas, exactamente no ponto que tanto me doera antes, e prolongavam-se lateralmente. Sem grande esforço consegui enrolá-las em torno de mim. Uma imitação das gárgulas de pedra que, com olhos vigilantes, repousam os seus corpos de pedra nos edifícios da cidade. Concentrei-me um pouco, atónita com tudo aquilo, e percebi que, como um braço ou uma perna, as asas obedeciam ao meu comando. Primeiro consegui abri-las novamente, e depois consegui que abanassem para a frente e para trás, como se me preparasse para um voo. E, de facto, o que aconteceu foi que, quando me verguei sob o seu peso, o meu corpo flutuou por instantes até que, aterrorizada, perdi o controlo do seu movimento e caí estatelada no chão.
Não quis acreditar, aliás, ainda não acredito. Benção ou maldição? Doença ou não? A verdade é que me transformei em algo que não sei o que é. Ainda olho apavorada o espelho, sem saber o que sou. Super-mulher? mulher-morcego? Ou simplesmente uma aberração da natureza? Haverão outros como eu? Não sei. Não há resposta para nenhuma das minhas perguntas.
A noite está a cair. Anseio pela escuridão protectora, para sair para a rua, à hora em que já ninguém passa e posso, sozinha, ensaiar novos movimentos, perceber a extensão das mudanças operadas em mim. Percebi que agora posso voar. Consegui alcançar o sonho que o Homem almeja desde o início da eternidade. Posso voar.
As consequências de tal fenómeno são ainda nebulosas para mim. Não consigo imaginar como será a minha vida a partir do dia de hoje. Assusta-me saber que sou uma aberração, diferente dos outros humanos. Mas sou também alguém especial, capaz de fazer o que mais ninguém consegue. Poderei dar cambalhotas no ar, voar livremente, competir com os pássaros velozes. Não é esse o sonho de todos os seres humanos?
Não sei a que se deve esta transformação. Não sei se algum dia terei respostas para tantas perguntas. Mas sei que hoje foi o dia em que as páginas do livro da minha vida se viraram. E que tenho uma página branca à minha frente, pronta para receber o que, com a minha mão, eu queira nela escrever...
História fictícia escrita por mim para a Fábrica de Histórias