segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Instinto

Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Desafio #2

Um erro informático faz com que cerca de 400 pessoas ficam presas num pequeno departamento de uma empresa. Só há uma pequena máquina de snack e bebida.
(máximo: 400 palavras)


Ao fim de 50 dias, jazo no chão do átrio do escritório. As últimas réstias de energia não me permitem mais do que olhar em redor e observar as expressões e ténues movimentos dos meus companheiros de infortúnio. Quase se pode tocar a tensão que paira no ar. Todos observam. Todos se observam. Apenas aguardando o movimento em falso que servirá de desculpa para libertar a torrente de desespero e agressividade acumulados ao longo de todo este tempo.
Dezenas de pessoas amalgamadas num espaço exíguo, iluminado apenas pelas luzes da única fonte de alimento que nos tem mantido. Salvação e perdição, sob uma aura de neóns.


Insidiosa, sedutora, obscena. A serpente que incita a dar o passo em falso que trará o fim.
Há 50 dias que as portas de segurança se encerraram e perdemos o contacto com o exterior. Há 50 dias que 400 almas por aqui vagueiam, na esperança de um resgate. Há 50 dias apenas alimentados por uma pequena máquina de snacks e bebidas.

No início do cativeiro acidental, quando uma calma racionalidade ainda subsistia, criou-se uma comissão liderada por um ex-militar, que estabeleceu critérios para racionar os alimentos da máquina. Primeiro os mais doentes, os mais fracos. Só depois os restantes. Mas éramos 400. Rapidamente os mais fortes viraram os mais fracos e os mais resistentes os mais subnutridos. E a revolta começou. Os genes egoístas sobrepuseram-se. O instinto de sobrevivência passou a ser a voz que gritava acima de qualquer lógica. E as suas primeiras vítimas foram o nosso fortuito líder e a sua comissão. A chacina foi inevitável. O primeiro dos muitos assassinatos que se seguiram. À medida que a comida escasseava, qualquer tilintar de moeda ou movimento na direcção da máquina era interpretado como uma tentativa dissimulada de obter comida. E qualquer desconfiança deste género equivale aqui a uma sentença de morte. Os cadáveres amontoam-se.

Olho em redor. Nos olhares que me rodeiam, o desespero, a angústia, a esperança que se desvanece. A agressividade que começa a esvair-se com a energia que soçobra. Já ninguém se atreve a mirar o último chocolate que persiste na máquina. Sombras necrófagas começam a nascer no olhar de quem contempla a porta por detrás da qual os cadáveres foram depositados.

O silêncio para lá do nosso acidental sarcófago quebra-se. Uma batida, duas, três!!!! Salvação? Dizem que a fome extrema causa alucinações…

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