Pensei que tinha visto um caixote. Enquanto passava naquele passo em que o andar e o correr se misturam, já a noite se instalara e as estrelas espreitavam por entre os telhados dos velhos prédios da baixa.
Pensei que tinha visto um caixote. Um enorme caixote de cartão encostado à ombreira da porta de um prédio, bloqueando-a. No meu passo acelerado apenas o vislumbrei num relance. Na verdade a consciência do que vi só se veio a formar momentos depois…
Pensei que tinha visto um simples caixote. Daqueles que os habitantes da cidade, ou um qualquer lojista com uma duvidosa noção de cidadania, abandonam pelas ruas da cidade. Como se o objeto abandonado tivesse a capacidade de ganhar pernas e sair dali pelos próprios meios, sem permanecer no mesmo lugar e assumir a condição de lixo.
Pensei que tinha visto um caixote. Um simples caixote. E ia passando sem olhar. Sem sequer me importar com o que me rodeava, absorta comigo mesma. Mas um reflexo involuntário, daqueles que nos faz olhar para o lado quando algo próximo se mexe, mostrou-me que havia muito mais ali do que um pedaço de cartão prensado. Extraordinariamente os meus olhos cruzaram-se com outro par de olhos, meio escondidos por detrás da beira da caixa. O sobressalto fez o meu passo vacilar e, andando mais devagar, olhei novamente. E agora, mais do que um par de olhos negros, curiosos mas possuidores de uma tristeza profunda, mirava-me um rosto de homem, de pele curtida pelo sol, barba negra e comprida, e cabelos desalinhados. Olhava-me com enfado. Como se eu fosse a milionésima pessoa a passar ali naquela noite e a interromper o seu descanso. Olhava-me como se eu fosse a visita que aparecera tarde e sem avisar. Queria dormir e eu era a intrusa que não o permitia.
Perturbada, desviei o olhar. Retomei o meu passo acelerado. Mas não regressei ao meu mundo interior, onde me encontrava aquando daquele encontro fortuito. Desperta, fui atenta aos vãos de escadas, soleiras de portas, cantos e recantos onde mais pessoas se abrigavam da noite e procuravam refúgio.
Pensei que tinha visto um caixote. Um simples caixote. Mas afinal era a casa onde morava um homem. Um homem que, com um simples olhar me trouxe de volta à realidade. Um simples olhar que me mostrou que, afinal, há mais caixas com homens lá dentro…