sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Gato

Meia dúzia de passinhos lentos por cima do sofá e um ágil salto para cima da mesa de jogo. Duas ou três cheiradelas e foi a vez da cadeira forrada a couro, antes do elegante regresso ao chão. Ah, como me sinto orgulhoso de manter o porte airoso, apesar da idade!...

Não reconheço este espaço. De familiar apenas este tão familiar humano, que ontem me agarrou e me trouxe para aqui.

Que confusão!... E que maçada...! Detesto sítios novos, sobretudo se fechados como esta casa. Os meus cantos familiares, os objectos habituais, tudo mudou.... Os rituais impossibilitados. As rotinas quebradas. Afinal de contas sou um animal de hábitos, e os meus pêlos brancos não abonam a favor da possibilidade de me adaptar a uma vida completamente nova.
Porquê isto agora?! Não entendo, depois de tanto tempo. Eu até gostava da outra casa, pequena mas acolhedora...
Mas está resolvido: esgueirar-me-ei por uma porta entreaberta, ou uma janela inadvertidamente mal fechada, logo que a primeira oportunidade surja.

De facto, a oportunidade já surgiu, esta manhã, quando o jornal bateu na soleira da porta, atirado por um qualquer irritante miúdo numa bicicleta, daqueles que adora passar as horas mortas a atar latas barulhentas ao rabo dos gatos vadios. Fred, descuidadmente, abriu a porta, pegou no jornal e, encostado à ombreira da porta ainda aberta, entreteve-se a ler os títulos da capa, enquanto acabava de fumar o seu cigarro. Como se não estivesse habituado às ariscas companhias felídeas. Mas já se passaram mais de três anos desde a altura em que tal facto deixou de ser verdade...

Qualquer coisa fez com que não aproveitasse essa oportunidade. Inexplicável... Esperança...?

À medida que Fred revolve os haveres ainda dentro da mala, um aroma a passado eleva-se pelos ares. Doce e suave, misturado com um fumo intenso e amargo. Perfume e tabaco. Tão familiar. Holly...

Já há tanto tempo que este odor se desvaneceu do antigo apartamento. Aos poucos passou ao passado. Nao é mais que uma memória antiga.

Pelo menos para mim, porque para Fred tudo ainda parece vivo. Intocado, como se o tempo e a vida não tivessem tomado um rumo indesejado. Até há bem pouco tempo acordava de noite gritando o nome dela, mesmo estando acompanhado de outras companheiras fugazes junto das quais procura o oblívio.

Para mim tudo ficou na mesma. Continuei a vaguear pelas prateleiras vazias e empoeiradas. Dormitava dentro do lava loiças revestido de uma desleixada camada de gordura. Aguardava que Fred se lembrasse de mim e me desse uma tigela de leite ou um qualquer resto da pouca comida que ingeria.

Custa-me admitir isto, mas a verdade é que também eu sinto a falta daquela que talvez tenha sido a minha mais honesta e leal companheira. A única que nunca pretendeu possuir-me como a qualquer objecto e que me chamava simplesmento "Gato". E a única a quem nunca ousei chamar "a minha humana". Por muito tempo fomos apenas dois seres que coabitavam. Que partilhávamos um mesmo espaço numa saudável parceria. Eu tolerava as barulhentas festas envoltas numa névoa daquele fumo asfixiante que os muitos humanos que ali se juntavam faziam, enquanto bebiam e falavam alto. A tais eventos assistia do topo do móvel da cozinha ou da prateleira mais alta que conseguia encontrar. Por seu turno ela alimentava-me, ignorando todas as vezes em que saltava para cima de um qualquer convidado que se atravessava no meu caminho, ou em que afiava as garras em qualquer sítio inconveniente.

Depois veio Fred, e vivemos os três no apartamento dela por bastante tempo. Entre Fred e Holly as demonstrações de afecto e os sorrisos eram frequentes. Estavam felizes. Pelo menos Fred estava, porque a sós, só eu partilhava das lágrimas de Holly. Lágrimas que nunca compreendi, mas às quais respondia roçando-me com ternura pelas suas pernas e deixando-a afagar o meu pelo amarelo de pequeno leão doméstico.

Até que houve um dia em que, do alto de uma prateleira, a vi sair. Com uma pequena mala pendurada no antebraço. Com o seu mais elegante vestido preto, lenço na cabeça e óculos escuros que escondiam as lágrimas que tentava, em vão, conter.

Foi a última vez que a vi. Por dias aguardei pacientemente, junto à porta. Mas ela não regressou... Quanto a Fred procurou-a incessantemente por mais de um ano. Viajou várias vezes, deixando-me ao cuidado do vizinho japonês. Mas de todas as vezes regressou sozinho.
Há uns dias atrás recebeu uma carta. Leu-a com sofreguidão e rasgou-a, gritando "Casada? Casada? Aquela vadia?". Enraivecido, partiu tudo o que encontrou. Garrafas vazias e cheias. Loiça. Cortinados rasgados. Por dias seguidos ficou fechado.
Até que ontem de manhã abriu as janelas de guilhotina e deixou entrar o ar. Fez a barba. Vestiu-se como antigamente, bem aprumado e fez um telefonema. Saiu. Horas depois regressou, calado, de expressão hermética mas determinada. Aos seus poucos haveres reuniu-os e colocou-os numa mala. Reparei que entre eles estavam também dois ou três dos objectos que Holly deixara para trás. Pegou em mim debaixo do braço - claro que tive que dar luta, como se aquilo fosse maneira de transportar um gato como eu...!!! Enfim, lutei em vão... - pegou na mala com a outra mão e saímos. Percorremos várias ruas da movimentada Nova Iorque, até entrarmos num táxi.
Não sei quanto tempo andámos naquela viagem infernal. Estava demasiadamente enjoado para perceber. Mas parámos já longe do rebuliço do trânsito e da citadina amálgama humana, junto de uma casa de um só piso, com um portão azul meio ferrugento cujo lamentoso chiar se ouviu a milhas de distância quando Fred o abriu para o cruzarmos. Tirou uma chave do bolso e girou-a na fechadura, empurrando a porta de madeira branca.
Deixou-me finalmente saltar para o chão. "Vais ver que te habituas..."
Mas não percebi se aquelas palavras eram para mim ou para si próprio...
Texto escrito por mim para a Fábrica de Histórias