segunda-feira, 11 de maio de 2009

Inesperada Filosofia

O mesmo autocarro. À mesma hora. A mesma meia hora. Todos os dias. Infindavelmente.

Àquela hora obscenamente matutina, a minha actividade cerebral, próxima do nada, não me permite debruçar sobre o quão assustadora é esta rotina que se arrasta até ao infinito. Aliás, não me permite pensar em nada. Por isso, limito-me a observar o que me rodeia nos minutos de viagem que ainda faltam, alternando entre os meus eternos companheiros de viagem e o filme que passa a alta velocidade na tela que é o vidro frio, ao qual encosto a cabeça, desejando que aquele embalo me devolva de volta ao sono que a tanto custo abandonei. Mas aos poucos, vou despertando.

Passo os olhos em redor, menos por curiosidade pelas pessoas que me rodeiam, do que para confirmar que todas elas estão sentadas nos seus lugares, como se houvesse uma ordem pelas quais devessem estar "arrumadas". Doce ilusão da previsibilidade do mundo...

O autocarro detém-se em mais uma paragem, e entra a mulher que se vai sentar dois bancos à minha frente, de frente para mim. Aparenta ter mais alguns anos que eu. Veste-se com esmero, tudo perfeitamente aprumado - demasiadamente!... - nem uma ponta do seu negro cabelo a esvoaçar. Bree Van de Kamp?!... "Em pessoa!", penso, reprimindo um revirar de olhos e um sorriso sarcástico.

Esta personangem desperta-me a atenção. Deixa-me a imaginar como será a sua vida para além daqueles vinte minutos de autocarro. O que faz, o que pensa, com quem fala... Mas não entendo o porquê desta curiosidade.

Imagino-a superficial, incapaz de fazer qualquer reflexão que ultrapasse o registo concreto de uma criança de 10 anos de idade. Imagino-a falando do jantar que preparou para as amigas na sua tão adorada - e excessivamente comentada - Bimby. A frequentar reuniões da paróquia e a pavonear-se com a "nata" social da nossa cidade de subúrbio. A falar enternecida das conquistas banais do seu patologicamente bem comportado filho. E sempre a brilhar, ao lado de um marido influente e bem colocado socialmente. O homem que a sua mãe escolheria (escolheu?!) para genro.
Desprezo-a. Ou à vida que fantasiei para ela. Mas a curiosidade que me prende o olhar naquela mulher por mais do que meio segundo permanece. Esperança ingénua de me surpreender?... Desejo arrogante de confirmar o que penso já saber?... Vou no embalo destes pensamentos até que a viagem termina, e todos eles se esvaecem da minha mente. O dia começa.
Um dia, após uma entediante manhã de trabalho, vou almoçar no shopping que fica uns quarteirões mais afastado do meu presídio laboral. Uma comemoração com colegas de qualquer coisa pouco importante.

Alguém sugere que passemos na livraria no primeiro andar, e lá nos arrastamos, numa anedónica excursão que vai errando molemente pelos corredores, ainda que com destino traçado.

Espalhamo-nos pelas alas da livraria, cada um pelas secções que mais nos interessam. Eu fico-me pela poesia. Não porque me interesse particularmente, mas apenas porque é a secção que fica mais perto da porta, o que me dá a oportunidade de observar quem vai passando por ali. Alterno espreitadelas indiscretas a quem passa, com as páginas desfolhadas de um ou outro livro cujo título me chama a atenção, lendo estrofes dispersas de poemas aleatórios.

"Começamos a vida primeiro com a poesia e depois pela realidade." disse uma voz feminina atrás de mim. Virei-me, em sobressalto, para encarar quem me interpelara. E eis que dou de caras com a mulher que mentalmente vou encaixando num episódio de Desperate Housewives durante aqueles 20 minutos diários. Quase fico de boca aberta. Nunca esperaria encontrá-la ali. E muito menos a citar Schoppenhauer.

Num fragmento de segundo verifico que veste a t-shirt encarnada que identifica os vendedores do estabelecimento. Olha-me com um sorriso simpático. Mas no seu olhar não vislumbro qualquer centelha de reconhecimento. Não sabe quem eu sou. Não me conhece como eu a conheço, do nosso partilhado périplo diário.

"Mas, segundo ele, era com a realidade que deveríamos começar, e não com a poesia, para evitar a infelicidade da juventude." - respondo, talvez de modo um pouco pedante, mas com orgulho por o elemento surpresa daquele contacto não me ter toldado o raciocínio.

"Sim e concordo com ele. Mas não quer dizer que uma dose de ilusão seja má. Ao menos ajuda-nos a sobreviver aos dias maus." Enquanto falava, a minha sorridente interlocutora pega num dos livros e começou a falar-me de um poema a este propósito: "Poema para Iludir a Vida". Fernando Namora.

Sem que eu tenha tempo de frasear a questão que me baila no espírito ("Então, mas se aceitarmos a vida como ela é não nos poupamos ao esforço da ilusão?!"), oiço o meu nome perto da porta. Hora de ir embora. Despeço-me com um sorriso vago à vendedora da livraria e saio. Ainda sem palavras. Ainda sem acreditar na mesma conversa com aquela personagem coabitaram Namora e Schoppenhauer.

No dia seguinte ela senta-se no mesmo banco no autocarro...


Texto escrito por mim para a Fábrica de Histórias

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Perdidos e achados

Pegou nas chaves e saiu. À procura de tudo ou de nada. Tentando mudar aquilo que sabia imutável. Procurando qualquer coisa, mas sem saber o quê…
Era já de noite, e estava frio, mas não se importou. Já que nada mudava nos seus dias, quem sabe a noite lhe trouxesse algo de novo. Entusiasmo. Alento. Esperança…
Foi calcorreando as ruas desertas, ao sabor do acaso, sem pensar. Como se fossem as suas pernas e não ele a decidir o destino final. Um autómato à mercê dos caprichos dos seus membros.
Àquela hora, a cidade parecia ter sido esvaziada de vida humana. Esta podia apenas adivinhar-se por breves sinais de quem por ali tinha passado: a beata de um cigarro que alguém não tivera tempo de fumar até ao fim; a folha de jornal que rodopiava pela calçada ao sabor do vento; o cheiro acre de urina humana num beco sem iluminação.
Mas ao passar, num passo vago, estava alheio a tudo isto.
Na sua mente, repetiam-se incessantemente as imagens daquela manhã. O cheiro doce que se esgueirou na sua direcção. O rosto alvo que encontrou ao procurar a origem daquela fragrância. A suavidade das mãos brancas que roçaram pelas suas ao entrar no elevador amontoado de gente. A voz grave e sensual com que lhe agradeceu, quando a ajudou a apanhar as folhas que deixara cair no chão.
Ele fizera pouco mais do que sorrir-lhe em resposta a este agradecimento. Queria ter falado. Queria ter dado a deixa que a faria ficar ali mais uns instantes, suspensa pelo seu sentido de humor, pela sua inteligência, pela sua sagacidade…
Mesmo depois dela ter virado costas e retomado o caminho para o trabalho, ele ficara parado, a olhá-la. A contemplar aquela musa matinal. Com milhões de palavras revolvendo-lhe o espírito, mas sem ser capaz de dar sentido a nenhuma delas. Sem conseguir formar uma frase que a detivesse. Até ela desaparecer.
Passadas já tantas horas sobre aquele momento, sentia ainda o amargo sabor da oportunidade perdida. Mais uma.
Embora não soubesse, já caminhava havia quase uma hora.
Ao longe avistou um vulto, que se tranformou numa silhueta e depois num homem que, ainda bastantes metros à sua frente, caminhava num passo ziguezagueante. Vinha na sua direcção, cambaleando. Bêbedo? Provavelmente.
Quando o homem já idoso estava já bem perto de si, estacou a olhá-lo, coçando com um dedo o oleoso cabelo, num trejeito pensativo. Como se nunca antes tivesse visto um ser humano. Um hálito forte confirmava as suas suspeitas.
- Que fazes aqui puto? - perguntou-lhe numa voz arrastada.
- Ando. Apenas. - retorquiu, com a voz sumida de quem não estava certo de que deveria estar a ter aquela conversa. Mas algo de tão inusitado era tão irresistível…
- A esta hora? Ah, isso são as gajas! Sabes, tens que as saber levar, senão já sabes: já eras!
- Já era?
- Sim, passas à História, partem para outra estás a ver? Não percebes nada de mulheres pois não?
- Talvez sim. Talvez não. Não sei.
- Ui, ui, ui!!! Já estou a ver tudo. Um homem da tua idade?! Ah, quando eu era novo, não havia nenhuma que me escapasse! Vem aqui falar com o Zé, que ensino-te uns truques. Mas primeiro pagas-me mais um copo, que de bocas secas não sai nada, só asneiras!!!
Aproximou-se do etilizado companheiro de jornada, revolvendo os bolsos das calças. Tinha ainda algumas moedas. O suficiente para fazer durar por algum tempo o combustível daquela conversa. O suficiente para lhe devolver a minúscula dose de esperança contida nas palavras de um homem ébrio.
Texto escrito por mim para a Fábrica de Histórias

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Dissonância

Olhava para o telefone como se fosse uma televisão. Estático, mal pestanejava.
Ao ausente espectador daquela cena, pareceria que se tratava do decrépito homem-estátua que, procurando mais uns cêntimos para matar a sobriedade, passava horas imóvel em ruas movimentadas, povoadas pela horda de consumidores compulsivos que diariamente procuravam os preços mais baixos de coisas de que não tinham falta nenhuma. Mas não. Estava em casa, sozinho, apenas olhando o telefone.
Se os circuitos eléctricos do seu cérebro lhe permitissem pensar um pouco para além do motivo daquela espera infinita, perguntar-se-ia há quantas horas ali estava, e saberia que já dois ocasos tinham passado, que o terceiro estava bem perto. Aperceber-se-ia de que nada comera e pouco dormira em todo aquele tempo de meditabunda quietude. Notaria as profundas sombras por baixo dos seus olhos. Notaria a barba que crescia insolente. Notaria os pêlos eriçados, arrepiados pelo frio daquele quarto semi-obscuro e gelado. Mas na sua mente nada mais existia para além do telefone, e do anseio receoso pelo momento em que ele tocaria.
Aquela natureza morta retratava uma espartana divisão, em que para além da cadeira de madeira de espaldar alto em que ele se encontrava e do telefone que, em frente dele, jazia no chão, havia apenas uma estante com meia dúzia de livros velhos despenteadamente distribuídos pelas prateleiras de madeira escura, uma pequena mesa redonda de madeira por envernizar, e umas grossas cortinas castanhas, que obscureciam o ambiente, fazendo com que aquele espaço se assemalhasse a uma caverna habitada por um velho e sanguinário ser lucífugo.
Na sua mente apenas havia o telefone, e a antecipação do seu toque. Sabia que o faria saltar da cadeira. Sabia que o ensurdeceria. Mas não desejava outra coisa. Não pensava em mais nada.
Estaria ela viva? E se estivesse, ligar-lhe-ia? E se não estivesse, avisá-lo-iam? E o que faria depois da chamada que aguardava? Correria para ela? Desprezá-la-ia? Choraria a sua morte? Comemorá-la-ia? Continuaria a viver?...
Não encontrava respostas dentro de si, mas continuava à espera, desejando ardentemente que pelo telefone elas chegassem. Que aquelas reticências entre parêntesis se desmoronassem, para que pudesse retomar a sua vida como se elas nunca lá estivessem estado. Para que pudesse voltar a inalar oxigénio, depois de ter sustido a respiração durante tanto tempo.
Um som estridente rasgou o silêncio como um raio rasga os céus plúmbeos da tempestade. A luz do visor do telefone iluminou a sua face.
O primeiro toque... Pareceu-lhe irreal, distante, como se proviesse de outra dimensão, de um outro planeta.
O segundo toque... Encheu-lhe os ouvidos, agrediu-lhe os tímpanos e ficou a ressoar na sua cabeça mesmo depois de ter terminado.
O terceiro toque... Fez todo o seu corpo vibrar.
Estendeu um braço devagar, inclinando-se ligeiramente na direcção do telefone, como se o membro fosse tão pesado que o forçasse a vergar-se para o sustentar. Parou a milímetros de alcançar o auscultador.
O quarto toque... Hesitou ainda.
O quinto toque... Tomado por algo que não sabia o que era, levantou-se, ignorando o protesto doloroso dos músculos, obrigados a mexer-se depois da tão prolongada imobilidade.
O sexto toque... Um passo, dois passos, três passos a caminho da porta da rua, sem olhar para trás. A mão que rodou a maçaneta e a abriu.
O sétimo toque... Ouviu-o já abafado, através da porta que fechara atrás de si, enquanto descia o primeiro patamar de escadas em direcção à rua.
O oitavo toque...

Já não o ouviu.