sexta-feira, 8 de maio de 2009

Perdidos e achados

Pegou nas chaves e saiu. À procura de tudo ou de nada. Tentando mudar aquilo que sabia imutável. Procurando qualquer coisa, mas sem saber o quê…
Era já de noite, e estava frio, mas não se importou. Já que nada mudava nos seus dias, quem sabe a noite lhe trouxesse algo de novo. Entusiasmo. Alento. Esperança…
Foi calcorreando as ruas desertas, ao sabor do acaso, sem pensar. Como se fossem as suas pernas e não ele a decidir o destino final. Um autómato à mercê dos caprichos dos seus membros.
Àquela hora, a cidade parecia ter sido esvaziada de vida humana. Esta podia apenas adivinhar-se por breves sinais de quem por ali tinha passado: a beata de um cigarro que alguém não tivera tempo de fumar até ao fim; a folha de jornal que rodopiava pela calçada ao sabor do vento; o cheiro acre de urina humana num beco sem iluminação.
Mas ao passar, num passo vago, estava alheio a tudo isto.
Na sua mente, repetiam-se incessantemente as imagens daquela manhã. O cheiro doce que se esgueirou na sua direcção. O rosto alvo que encontrou ao procurar a origem daquela fragrância. A suavidade das mãos brancas que roçaram pelas suas ao entrar no elevador amontoado de gente. A voz grave e sensual com que lhe agradeceu, quando a ajudou a apanhar as folhas que deixara cair no chão.
Ele fizera pouco mais do que sorrir-lhe em resposta a este agradecimento. Queria ter falado. Queria ter dado a deixa que a faria ficar ali mais uns instantes, suspensa pelo seu sentido de humor, pela sua inteligência, pela sua sagacidade…
Mesmo depois dela ter virado costas e retomado o caminho para o trabalho, ele ficara parado, a olhá-la. A contemplar aquela musa matinal. Com milhões de palavras revolvendo-lhe o espírito, mas sem ser capaz de dar sentido a nenhuma delas. Sem conseguir formar uma frase que a detivesse. Até ela desaparecer.
Passadas já tantas horas sobre aquele momento, sentia ainda o amargo sabor da oportunidade perdida. Mais uma.
Embora não soubesse, já caminhava havia quase uma hora.
Ao longe avistou um vulto, que se tranformou numa silhueta e depois num homem que, ainda bastantes metros à sua frente, caminhava num passo ziguezagueante. Vinha na sua direcção, cambaleando. Bêbedo? Provavelmente.
Quando o homem já idoso estava já bem perto de si, estacou a olhá-lo, coçando com um dedo o oleoso cabelo, num trejeito pensativo. Como se nunca antes tivesse visto um ser humano. Um hálito forte confirmava as suas suspeitas.
- Que fazes aqui puto? - perguntou-lhe numa voz arrastada.
- Ando. Apenas. - retorquiu, com a voz sumida de quem não estava certo de que deveria estar a ter aquela conversa. Mas algo de tão inusitado era tão irresistível…
- A esta hora? Ah, isso são as gajas! Sabes, tens que as saber levar, senão já sabes: já eras!
- Já era?
- Sim, passas à História, partem para outra estás a ver? Não percebes nada de mulheres pois não?
- Talvez sim. Talvez não. Não sei.
- Ui, ui, ui!!! Já estou a ver tudo. Um homem da tua idade?! Ah, quando eu era novo, não havia nenhuma que me escapasse! Vem aqui falar com o Zé, que ensino-te uns truques. Mas primeiro pagas-me mais um copo, que de bocas secas não sai nada, só asneiras!!!
Aproximou-se do etilizado companheiro de jornada, revolvendo os bolsos das calças. Tinha ainda algumas moedas. O suficiente para fazer durar por algum tempo o combustível daquela conversa. O suficiente para lhe devolver a minúscula dose de esperança contida nas palavras de um homem ébrio.
Texto escrito por mim para a Fábrica de Histórias

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