quarta-feira, 9 de março de 2011

Não Ser

Atirei o meu corpo exausto para cima da relva e ali fiquei. Não sei por quanto tempo.
Subi ao cimo de mim e vi-me adormecida num sono profundo, com um leve sorriso assomando aos lábios. O desconhecido era completo. Mas não havia medo. Não havia emoções.
Dei por mim transformada num ser completamente diferente. O Universo mudara. Eu mudara. As regras eram outras. As leis da Física tinham sido deixadas para trás. Inimaginável. Inconcebível. Mas real.
Fechara os olhos e pairava agora no vazio. Por entre a matéria, imaterialmente. Sem chão nem tecto. Sem barreiras nem obstáculos. Vagava pelo espaço vazio. Apenas pairava.
Estava consciente mas não sentia. Olhava o passado, sem arrependimento nem nostalgia. Via o futuro sem nada ansiar. Via, pensava, mas não sentia. Nem tristeza nem alegria. Nem raiva, nem amor. Apenas era.
Estava e não estava. Em qualquer lugar. Em todos os lugares e em lugar nenhum. Em todos os tempos e em tempo nenhum. Apenas estava.
O mundo não era mais do que apenas uma paragem possível, entre muitas, entre um Universo inteiro, facilmente acessível e à distância de um pensamento. Da minha vontade.
As pessoas em meu redor passavam por mim, tocavam-me, mas sempre alheias à minha presença. À minha existência. Imaterial e Invisível.
Seria assim depois da morte? Estaria eu morta? - Confirmei. Não, a respiração lenta e regular denunciavam um simples sonho. Seria esta a essência dos Anjos?
Acordei, sobressaltada.
Demasiadamente real para ser um sonho.
Mas nenhuma outra coisa poderia ter sido.
Tantas perguntas por responder...

terça-feira, 8 de março de 2011

A menina que queria ser verde

Maria vivia numa aldeia junto a um bosque. Desde pequena que percorria a floresta e que a conhecia como a palma das suas mãos. Em criança a sua brincadeira favorita era jogar às escondidas na floresta. Bem escondida, embrenhada na vegetação, passava momentos de puro deleite a contemplar as aves, as flores, as árvores. Era o verde da vegetação o que mais admirava. Em diferentes tonalidades, com matizes de luz e de sombra, aquele verde prendia-lhe a atenção. Captava o seu olhar, que por ali permanecia por horas e horas.
Um dia, num devaneio de criança, decidiu que queria ser verde como aquelas árvores magníficas. Queria que a sua pele e os seus cabelos se tingissem daquelas tonalidades admiráveis. Não apenas pelo tanto que gostava delas, mas também porque assim conseguiria ludibriar as restantes crianças, que desse modo jamais a conseguiriam encontrar nos seus jogos de esconde-esconde.
Poderia ter sido apenas uma ideia passageira na mente volátil de uma criança, mas a verdade é que, a partir daquele dia, Maria envidou todos os esforços para que, ganhando o seu corpo tonalidades de verde, pudesse transformar-se num ser daquele bosque frondoso. O devaneio transformou-se em sonho. E o sonho tornou-se objectivo.
Por muito tempo, para além do tempo em que as crianças deixam de o ser e os jogos de esconde-esconde deixam de fazer sentido, Maria fez tudo o que sabia ou imaginava para alcançar o seu objectivo. Já adulta, quando já não brincava e a sua principal ocupação era ser a contadora de histórias da aldeia, aquela ideia não saíra da sua cabeça. Era na floresta que obtinha a inspiração para escrever as suas histórias. E, no fundo da sua mente, achava que ao tornar-se um ser da floresta, uma menina verde, poderia fundir-se com ela. E ao fundir-se, usufruir permanentemente da inspiração que, sem excepção, dali obtinha. E assim alimentava a sua busca, quando parecia que já perdera o sentido.
Mas todos os seus esforços redundaram em fracasso. O único resultado? Admoestações constantes da família e olhares de soslaio dos restantes aldeãos, que assim a viam como a rapariga louca que contava histórias às suas crianças.
Um dia, numa das suas demandas por inspiração pela floresta, Maria encontrou uma bruxa. Sabia quem era, pois era lenda famosa na aldeia. E era temida por quantos nela viviam. Ainda assim, Maria não hesitou e fez o seu pedido. «Quero ser verde». Ao que a bruxa respondeu «Sê-lo-ás, se pegares nesta arca que o meu jumento carrega e, sozinha, a colocares no topo da montanha mais alta.».
Maria nem queria acreditar no que ouvia. Era apenas aquilo que a separava da concretização do seu sonho? Parecia bom de mais para ser verdade. E de facto, veio a descobrir que assim era, logo que tentou carregar a arca. O peso era imenso. Nem para um homem com o dobro da sua força seria possível carregar aquela enorme arca cujo conteúdo desconhecia. Mas não desistiu. Com a tenacidade que revelara ao longo de todos aqueles anos, Maria arregaçou as mangas e pôs as mãos à obra.
Milímetro a milímetro, arrastou a enorme arca, parecendo que a cada minúsculo avanço se lhe esvaíam as forças. Sob calor abrasador ou debaixo de chuvas torrenciais continuava esta hercúlea tarefa, apenas com pequenas pausas para dormir ou alimentar-se. Adormecia e acordava a pensar em maneiras para conseguir transportar a sua enorme carga. E muitas vezes até em sonhos estes pensamentos não a abandonavam. Muitas vezes pensava em desistir. Para quê aquilo tudo? Para quê, se na verdade sempre tinha sido capaz de escrever e contar as suas histórias e o modo como o fazia sempre fora suficientemente bom para ganhar sustento e a admiração de quem a ouvia? Mas aquela vozinha de criança jamais a abandonava e impelia-a a prosseguir.
Uma noite, em que adormecera de pura exaustão se mesmo ter comido o jantar que a mãe lhe levara, Maria teve o mais estranho dos sonhos. Um ser iluminado por uma majestosa luz doirada apareceu, iluminando todo o céu da noite até que as estrelas se tornaram pálidas. Este ser, este Anjo, como lhe chamou, pairava no ar e falou-lhe com a mais doce das vozes. Uma voz de onde ressoava amor puro e pura magia.
«Maria» disse «para quê tanto sofrimento para no final nada teres? Sabes tão bem quanto eu que este não é o teu lugar. Queres ser verde, mas sabes que não precisas de o ser. Tudo o que precisas de ser está dentro de ti. As tuas histórias já são lindas e inspiradas. Mudares a cor da pele ou o que quer que seja em ti não melhorará nada. Porque já não há nada para melhorar.».
«Mas, Anjo, eu quero ser verde, eu tenho que o ser. É essa a minha missão. Só assim vou conseguir a verdadeira inspiração e o verdadeiro talento para escrever as minhas histórias. Se o não fizer, nunca serei capaz de me comparar aos grandes contadores de histórias da região. E sem isso, nunca poderei ganhar dinheiro para sustentar a minha família.»
«Oh insensata Maria, enquanto te prenderes a essa ideia, jamais poderás alcançar aquilo que realmente precisas! Mas vou ajudar-te. Foi para isso que vim. Sou eu quem vai pegar na arca e colocá-la no topo da montanha. Apenas para que sintas que a tua missão foi cumprida. Quando isso acontecer, descobrirás que a bruxa te enganou. Ninguém muda de cor ou de aparência desta maneira. E tu não és excepção. Não serás verde. Mas, se desceres a encosta desta montanha, ao longo do caminho encontrarás um caderno de capa de coiro, uma pena e um frasco de tinta. Recolhê-los-ás e regressarás a casa. Aí, sentar-te-ás à tua secretária, junto à janela e começarás a escrever. E verás que, com a magia destes objectos, escreverás as mais lindas histórias que te trarão o dinheiro de que precisas.» E, dito isto, a luz doirada começou a desaparecer e, aos poucos, devolveu a negrura ao céu nocturno e o brilho às estrelas que a olhavam de lá de cima.
Quando Maria acordou, de manhã bem cedo, a arca desaparecera. Assustada, receando que aquele Anjo não tivesse sido mais do que um sonho, Maria correu pela encosta acima até que, numa clareira, o espaço aberto entre as copas das árvores lhe permitiram ver o topo da montanha. E lá avistou a arca que durante tanto tempo carregara. Como que por magia, a sua missão estava cumprida. Como o Anjo dissera. E sem que o verde colorisse a sua pele.
Sem saber se deveria ficar alegre ou triste, mas tomada de uma enorme sensação de alívio, iniciou o percurso que a levaria à base da montanha, de regresso a casa. Depois de dois dias de caminho, encontrou no meio da vereda uma bolsa. Sem suspeitar do que se tratava, pegou nela a medo e abriu-a. E foi com alegria que constatou que eram verdadeiras as palavras do anjo. Um caderno com as páginas em branco. Um tinteiro de vidro com tinta preta e uma linda pena branca, de ganso. Eram aqueles os objectos que o Anjo lhe enviara para que pudesse ser uma grande contadora de histórias. Finalmente, o seu verdadeiro sonho concretizar-se-ia.
Maria regressou a casa. A família, pressentindo o final daquela aventura sem sentido e o início de uma nova época de tranquilidade e prosperidade, saudou-a e envolveu-a em todo o seu amor. Logo que pôde fazê-lo, Maria colocou o caderno em cima da sua secretária, aberto na primeira página, deitou a pena em frente ao caderno, e no canto da mesa poisou o tinteiro. E, mal se sentou para escrever, novas ideias e novos mundos começaram a surgir nas sua mente. Novas histórias começaram a ganhar forma naquelas folhas de papel. Sem que precisasse de mudar o seu corpo ou a sua mente. Sem precisar de ser verde.
Bastou-lhe ser quem era para poder dar forma aos seus sonhos.
História escrita por mim para a Fábrica de Histórias