quarta-feira, 18 de maio de 2011

Invisível


Hoje o Destino resolveu meter o seu narizinho abelhudo na minha vida. Chamo-lhe Destino, como lhe podia ter chamado, Deus, Diabo, Fado, Azar, Alá,... sei lá!... As designações são tantas e as evidências nenhumas... Escolhi esta. Apeteceu-me.

Quando eu estava a um passo minúsculo de finalmente chegar ao céu, quando já quase conseguia voar, veio o Destino e prega-me uma daquelas piadas de mau gosto, que prega apenas porque a sua própria vidinha é um marasmo e precisa de se entreter.


E pronto, estava já eu prestes a voar quando um bater de asas mais hesitante e menos afortunado me levou direitinha ao chão. Mesmo depois de cair, continuei a dar às asas, mas a dor foi difícil de ignorar (é impressão minha ou esta metáfora está a tornar-se um bocado idiota?).


Vou ao hospital, tenho que recuperar rapidamente. Afinal de contas o céu não vai esperar para sempre que eu lá chegue!!! E aí, fico boquiaberta com o que descubro: tornei-me invisível.


Dado o conteúdo deste blog, isto nada teria de extraordinário. Mas a verdade é que, pela primeira vez, estou mesmo a falar na primeira pessoa, em discurso directo, desta dimensão que todos partilhamos e com os pés bem assentes no chão. Não foi um fenómeno paranormal. Não foi um milagre. Não foi um sonho nem um delírio. Passo a explicar.


Entro no gabinete médico que me aguardava de porta escancarada. Lá dentro, de costas para a porta uma mulher de bata branca, com um daqueles cabelos bem esticados com uma oleosidade que denuncia a necessidade urgente de um regresso ao cabeleireiro, falava ao telefone em voz alta. Bato à porta levemente. Não sou notada. Pigarreio. Nada. Peço licença para entrar num tom de voz que penso que já denunciava alguma impaciência. Nada outra vez, pensei eu. Mas com a rapidez de reacção de um caracol em dia de Verão, a senhora - a médica, claro está! - vira-se para mim e faz-me sinal para que entre, sem nunca interromper a conversa que está a ter.


Entro devagar (o meu estado não me permite outra coisa) e sento-me. Olho a médica que nem sequer me dirige um olhar. Fala num tom de voz enérgico com quem quer que seja, sobre uma terceira pessoa que desconheço. Alterna o olhar entre a janela e a sua mala, na qual remexe de vez em quando, distraída. E fala, fala, fala. Como seu eu nem estivesse ali. Como se eu nem existisse.


Foi aqui que comecei a achar que o meu principal mal não está na locomoção reduzida induzida pela queda, mas sim um etsranho caso de invisibilidade. Será que a mulher simplesmente não me vê???


O telefonema termina finalmente e, acto contínuo, a médica desvia o olhar para o monitor de computador que divide o espaço entre nós, sem nunca me fitar. Mexe no rato com movimentos que denunciam alguma inépcia, enquanto - finalmente! -me pergunta o porquê de eu estar ali.


Sou breve, a minha história não é complexa nem longa. E durante o meu sintético relato, apenas recebo um breve olhar de relance da médica, que anda às voltas meio perdida no mundo da informática. De repente, miséria das misérias "AH!!! Mas isto já deixou de funcionar outra vez!!!", geme a mulher numa verdadeira aflição. "Não sei o que fizeram a estas coisas, mas isto já nunca funciona!". E pronto, mais uma desculpa para que a médica passasse mais dez minutos a degladiar-se com o desafortunado pedaço de tecnologia, desapercebendo-se novamente da minha presença.


Ouve-se conversa no corredor. "OH colega! Pode ajudar-me aqui com o computador? Veja lá se me consegue pôr isto a funcionar". A donzela em apuros clama pelo cavaleiro para a salvar. Mas quem entra pelo gabinete dentro não é o garboso cavaleiro dos contos de fadas, mas um médico já de idade avançada, muito magro e com maneirismos que em cada instante denunciam uma homossexualidade não confessada mas conhecida por todos.


"Deixe lá ver isso!", diz o homem debruçando-se sobre a secretária e pegando no rato. "Vai ver que isto resolve.". "Oh!" - responde a médica, agora genuinamente aflita - "mas está a desligar-se!". "Calma, senhora, tenha calma!". E assim começa um diálogo que se estendeu por minutos que a mim me pareceram longos. Os dois médicos falavam entre si, ou falavam com o computador, ou chegavam mesmo a falar sozinhos. Comigo é que nada. Eu simplesmente não estava ali.


Talvez por defeito de profissão, acabei por me recostar na cadeira, e simplesmente deleitar-me a apreciar a cena. Havia, claro, aquele desassossego na minha mente que me questionava "Serei invisível?", "Será que não me vão ligar nenhuma?". Mas acabei por calar estas vozes e apenas apreciar a cena que era no mínimo caricata!


Num momento de tomada de consciência, lá o médico - ainda sem olhar para mim - diz qualquer coisa do género "Aqui a senhora está a olhar para nós, deve achar que não lhe ligamos nenhuma!". Mordo a língua para não proferir nenhum dos comentários azedos que me passaram pelo espírito em resposta a este comentário. Sobretudo agora que parecia que finalmente ia ser vista por uma daquelas criaturas!


Não me enganei. Poucos minutos depois saí do hospital com uma receita e um curativo. Mas saí também com uma outra certeza: uma pessoa pode ser invisível, mesmo que não seja em histórias e contos de fantasia.



domingo, 8 de maio de 2011

Luz e escuridão

Passeio pela rua clara, de fachadas brancas que refulgem ao sol do meio-dia. Não há recantos, não há sombras. Não há curvas nem ângulos. Apenas o branco e o céu. Em torno de mim viandantes de várias partes do mundo deambulam ostentando expressões alegres de quem caminha alheio às misérias do mundo. É assim que deve ser na zona turística de uma capital, numa amena manhã de Maio. Há, claro, quem esteja a trabalhar e tente tirar partido da onda benemérita de turistas de bolsas com cordões lassos. Mas apesar de para esses ser apenas mais um dia de trabalho, também eles têm estampadas nos rostos expressões de contentamento e alegria, como se a ausência de nuvens no azul acima das suas cabeças tivesse a mesma metafórica existência dentro das suas almas. Apenas sol, dentro e fora de si. Apenas pureza branca ao seu redor e no âmago de si.



De súbito, de qualquer recanto que desconheço porque inexistente por aquelas partes, surges tu, negro e sombrio. Detecto-te pelo canto do olho, sobressaltada, sem perceber de onde saíste. Por uma fracção de segundo, receio que tão inusitada aparição possa ser de algum modo ameaçadora. Um assalto talvez. Mas sem perceber bem porquê, o primeiro relance sobre o teu rosto revela a impossibilidade deste receio. Ninguém com uns olhos tão cristalinos poderia ter sequer um fiapo de intenções malévolas. Mas uma sobrancelha arqueada empresta-te um toque de malícia ou rebeldia, que de imediato me conquista, como se me desafiasse: “Não me vais seguir, pois não?”. O teu olhar carregado de segundas intenções serpenteia em redor do meu corpo, mas não dizes uma só palavra. Viras costas. E eu sigo-te.



Calcorreias a calçada como se ela fosse apenas um prolongamento de ti. Mais do que pertencer-te, o espaço que ocupas em cada passo parece ser absorvido pelo teu corpo e de repente tu és tudo em redor de nós. Dominas o espaço. E o tempo é apenas uma insignificância ao sabor dos teus caprichos.



Subimos e descemos as ruas estreitas da parte velha da cidade. Ruas minúsculas onde o sol não consegue lançar nem uma cintilância dourada. Como se de repente a noite tivesse caído sobre nós. Como se alvas ruas de antes não tivessem sido mais do que o afago de um sonho.



Páras sem te virar quando, depois de uma subida íngreme que me faz ofegar, chegamos ao pináculo da cidade, o castelo. Páro também, sem quebrar a fronteira invisível que me obriga a permanecer a uma dúzia de metros de ti.



Aproximas-te do muro que te separa do abismo e eu, num magnetismo involuntário que não compreendo nem controlo, avanço exactamente o mesmo número de passos que tu. E mais uma vez ali fico, contemplando a tua silhueta enquanto, imóvel, vislumbras um infinito que transcende a orbe do meu entendimento.



Viras-te para mim, lentamente. Olhas-me directamente nos olhos, como se me quisesses hipnotizar. Como se eu não estivesse já hipnotizada desde o primeiro momento em que olhei para ti. Numa luta contra a imobilidade que me estacou a uns metros de ti, consigo que as minhas pernas se movam. Um passo, depois outro. Passos lentos e árduos. Alcanço-te. Virada para o rio que refulge, o meu braço quase toca no teu. E neste vácuo entre nós, no silêncio, quase consigo ouvir o crepitar da energia que nos atrai. Que me aproxima de ti.



Continuas de costas voltadas para o rio. Apenas te alcanço com a periferia da visão. Sei-te bem perto. E no entanto sinto-te bem longe, como se existisses simultaneamente em duas dimensões diferentes, em dois mundos paralelos e eu apenas pudesse alcançar com limitações uma fracção desta existência desmultiplicada.



Assobias. Sons agudos deslizam dos teus lábios subitamente contraídos. Silvos melodiosos enchem o espaço entre nós e penetram em mim, fazendo-me vibrar. Imagens sibilantes começam a tomar forma na minha consciência. Estrelas, planetas e galáxias rodopiam à minha volta a uma velocidade estonteante. Até que a cena vai desacelerando, gradualmente, até parar perto de um pequeno satélite azul que orbita um colossal planeta. Num instante vejo-me rodeada de água por todos os lados. Estou no meio do mar e respiro como se a água fosse o meu elemento. Abaixo de mim uma miríade de pontos luminosos revela uma cidade subaquática no meio da imensidão negra. Compassadamente mexo braços e pernas e rapidamente a alcanço. E sem perceber como, dou por mim ao teu lado novamente. Mas desta vez és diferente. O teu corpo está envolvido por uma película prateada, cobrindo a pele morena que te conheci ainda há pouco. Os teus cabelos longos ondeiam como se voassem. Lanças-me um sorriso cândido e envolves-me num longo abraço, acetinado na nova pele que agora te descubro. Aproximas os lábios do meu ouvido e sussurras. “Fica.



E, antes de poder responder, numa fracção de segundos retorno ao ponto de partida. Estou de volta à muralha do castelo, e o rio está de novo ao pé de mim. O silêncio denuncia a tua ausência. Não existe mais o teu assobio. Não és mais ali.
Mas eu queria ficar…