domingo, 19 de junho de 2011

Last job

Sinto-me bíblico esta noite. O Alfa e o Ómega. O princípio e o fim. Ou será melhor dizer o princípio do fim?

Tudo começou numa noite fresca de primavera. Ali, à luz de uma lua que iluminava pensamentos, sob a incandescência dos candeeiros da autoestrada, os meus magníficos mecanismos deram um suspiro de supremo cansaço. Parei. A minha proprietária (a que de agora em diante chamarei dona apenas para encurtar a fraseologia), meio atarantada e com movimentos desordenados e chamadas telefónicas constantes, lá chamou o reboque para me tirarem dali.

E foi enquanto me içavam para cima do reboque, que as palavras da minha dona, proferidas ao som de um jazz melancólico de Diana Krall, selaram o seu - e o meu - destino: "Já chega, vou-me livrar de ti! Mas como vou arranjar dinheiro? Só se assaltar um banco...". Pensava eu que apenas haviam metáforas nestas palavras!...

Depois de uma desconfortável estadia numa oficina húmida e escura, e de um arranjo astronómico, regressei à minha rotina de viagens e estacionamentos, como se nada se tivesse passado. Mas algo diferente pairava no ar. A minha dona cada vez menos preocupada com as lombas e buracos na estrada, por cima dos quais passava como se conduzisse um carro que não lhe pertencesse. A sua condução mais agressiva. O seu ar ausente e alheado enquanto conduzia. Agora vejo tudo isto como indicadores que faziam prever o que se seguia. Mas como poderia eu imaginar?

Nunca antes acontecera, mas tornaram-se habituais passeios nocturnos pelos subúrbios da cidade onde vivia. Percorríamos, por vezes durante horas, ruas escuras e desertas a velocidade irregular. Tanto acelerávamos como passávamos bem devagar, ao sabor dos apetites da minha dona. Eu não percebia o que se passava, mas olhando agora para trás, tudo aparece com clareza: as ruas que percorríamos lentamente tinham sempre algo em comum - agências bancárias. Sim! Percorrendo as ruas bem devagar, olhando para um lado e para o outro, a minha dona estudava os arredores, a segurança, os prédios vizinhos, as ruas e os percursos circundantes. Vejo-o agora, porque na altura nada percebi. Confesso que aquela mudança de hábitos e tão estranhas rotinas apenas me fizeram na altura suspeitar que a minha dona tinha perdido o juízo. Mas nada me fazia prever o que se seguiria.

Estes passeios, primeiro noctívagos e depois diurnos também, prolongaram-se por semanas. Ao longo do tempo, a variedade de ruas percorridas foi reduzindo. Até que numa semana a rua percorrida era sempre a mesma. Uma rua residencial larga, numa urbanização de prédios novos em que a maioria dos apartamentos exibia cartazes gigantes "Para Venda". O único estabelecimento aberto, adivinhem...: Um banco. O enorme letreiro cor de rosa iluminava a rua de noite. Durante o dia era a única coisa que se destacava por entre os prédios de fachadas todas iguais. De dia ou de noite, poucas pessoas passavam por ali, e menos ainda eram aquelas que entravam no banco ou que utilizavam a Caixa Automática que ficava ao lado da porta do banco. O posto de polícia mais próximo ficava a 20 km dali, pecebi eu depois de tantas viagens nas últimas semanas. E a menos de 5 km dali havia uma entrada para a autoestrada. Durante dois ou três dias a minha dona estacionou-me a quatro ou cinco quarteirões de distância do banco e percorreu cada centímetro daquelas ruas a pé, com um bloco na mão, fazendo anotações. Nesta altura eu percebi que algo estava para acontecer. Tornava-se demasiado óbvio.

Até que esta noite, era uma da manhã, a minha dona sentou-se ao volante e começámos a percorrer o já familiar trajecto. Mas tudo estava diferente. As suas roupas geralmente coloridas deram lugar a uma roupa preta bem justa. Um capuz negro cobria-lhe a cabeça e a face. As mãos estavam trémulas e transpiradas. Ao seu lado, um grande saco de desporto repousava no banco e uma bolsa mais pequena estava pendurada na cabeceira do banco, esta bem pesada e de onde era possível entrever alguns objectos metálicos que não consegui identificar.

Parámos cerca de um quilómetro antes de chegar perto da agência, mas desta vez a minha dona deixou-me a trabalhar. Com a bolsa pequena a tira-colo e o saco grande na mão, saiu a correr deixando aberta a porta do lugar do condutor. De onde estava, não consegui ver o que se passava. Mas não demoraram 10 minutos até que alarmes estridentes soassem pelo ar e que, instantes depois, a minha dona voltasse a entrar esbaforida pelo carro e acelerasse como nunca antes em direcção à autoestrada.

Tínhamos já percorrido mais de 30 Km, quando as luzes azuis ameaçadoras começaram a reflectir-se no retrovisor. Sirenes estridentes cortavam o silêncio da noite. E a minha dona, num estado de agitação incontrolável, acelerava cada vez mais...

Com uma guinada brusca, dirigimo-nos para a saída da autoestrada. Talvez a minha dona pensasse que seria mais fácil despistar a polícia dentro de uma localidade. Mas, ingénua, não contava com todas as cancelas das portagens fechadas, certamente por obra da polícia que nos seguia. Nem sequer hesitou. Com o acelerador a fundo, passou por uma delas a toda a velocidade, quebrando-a e, com isso, estilhaçando o meu vidro da frente e amolgando a chapa da frente. Não parei, contudo. Continuei a andar a alta velocidade, mais rapidamente que nunca. E foi esta velocidade que fez com que acabasse aqui onde estou agora.

Mais à frente da portagem, havia uma curva bem apertada. Não sei se a minha dona não contou com ela (já tínhamos passado por ali antes...), ou se não conseguiu travar a tempo. Apenas sei que quando dei por mim estava a galgar o separador metálico e a voar em direcção do nada, rodopiando sobre mim mesmo, com barulhos de lata a amachucar-se, vidros a partir-se e gritos da minha dona apavorada. Até que parámos, e o silêncio por intantes se impôs.

Os carros da polícia pararam tão perto, que as suas luzes azuis me encandeavam. A minha dona, em trôpegos solavancos, conseguiu sair do carro, e cambaleando tentou correr levando o grande saco consigo. Mas não demorou nem um minuto até que uma meia dúzia de polícias a derrubassem, algemassem e lhe tirassem o saco de onde, depois de aberto, uma quantidade enorme de notas esvoaçaram.

Eu? Bem, eu sei que não vou voltar a percorrer estradas. Aqui, iluminado por flashes azuis, aguardo a última viagem de reboque que me conduzirá à sucata. Mas não sem uma sensação de ter sido um instrumento do destino. Os astros alinharam-se, selaram o destino da minha dona e fui eu quem a trouxe até aqui. Ela pensava que eu era seu, mas afinal foi o contrário.

Minha dona? AH! Ninguém manda em mim!!!!