segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Sarita...

Quando se sai de casa todas as noites, sabendo de antemão o que se irá passar, o normal é que a monotonia se instale. Já nem é necessário um esforço de imaginação para saber por onde se passará, que candeeiro servirá de testemunha aos eventos da noite, que pessoas se cumprimentarão com um breve olá ou um ligeiro aceno de cabeça, quem, depois de uma boa dose de álcool, se dirigirá a nós esfusiantemente, apesar de sermos apenas um rosto vago no meio de uma multidão. Para qualquer pessoa esta rotina imutável seria monótona e desgastante. Mas não para Sarita.

Sarita era o protótipo da mulher perfeita, fruto de uma infância vivida à sombra de pais exigentes e rigorosos. Pais que impunham regras, e que não lhe deixavam opção senão cumpri-las escrupulosamente. Como uma boa menina o faria. Como a boa menina que era. Desde que havia registo, jamais fizera algo que transgredisse os rectos ditames da autoridade parental. E era orgulhada e admirada por isso.

Desde miúda habituara-se à sua casa, ao seu quarto, como sendo o cantinho protector em que ninguém lhe faria mal. O único espaço no planeta a que podia chamar de seu. E era real esta percepção, porque excepto para limpezas ocasionais, nem os seus pais entravam nele sem a devida autorização. Cediam-lhe o domínio daquele espaço, como que para a compensar pelo domínio apertado exercido sobre si.

Crescera e nada mudara. O isolamento da infância e da adolescência e os comportamentos e pensamentos peculiares fruto de tanta solidão, rapidamente escavaram um fosso entre si e os colegas da sua idade. Sarita falava uma linguagem que não era a deles, dizia coisas que ninguém entendia (talvez porque imbuída de conhecimentos mais avançados, adquiridos por muitas horas de leituras solitárias), tinha ideias que lhes eram incompreensíveis. Não tardou a ser olhada como um ser estranho e a ser excluída e ridicularizada como tal. O que reforçava ainda mais o isolamento e solidão.

A frustração e o ódio pelo modo como era diariamente tratada pelos colegas foram gradualmente lançando raízes de aço dentro de si. Foram crescendo, fermentando, até que Sarita passou a odiar todas as pessoas que conhecia. Lia livros, via filmes e, olhando em redor, verificava que ninguém a tratava como àquelas princesinhas de contos de fadas, ou como às heroínas dos contos juvenis. Toda a gente a restringia, de um ou de outro modo. Ninguém mostrava o seu apreço por aquilo que ela era. Tirando os elogios vazios por parte dos professores, que no fundo eram mais expressões de auto-apreciação pelo seu próprio desempenho como professores do que um reconhecimento pela inteligência e esforço da rapariga, não sabia o que eram palavras de apreço, de carinho, de amor. E esse vazio ia crescendo de mão dada com um profundo ódio pelas pessoas. Um ódio incomensurável.

À medida que ia crescendo, pensamentos de vingança começavam a tomar forma. Quanto mais as palavras sarcásticas dos colegas cresciam nos seus ouvidos, mais vontade tinha de os fazer engoli-las até à última vírgula. Mesmo quando o liceu já terminara, e essas palavras existiam apenas e só no turbilhão da sua mente cada vez mais tortuosa.

Sarita deixou de estudar, e logo que pode foi trabalhar para um jardim infantil, como contínua. Sempre se dera bem com crianças. “Elas não me julgam nem troçam de mim”. Cedo percebeu que o salário que ganhava lhe permitia abandonar o ninho da sua existência, e criar o seu próprio planeta pessoal num apartamento alugado. E assim o fez. Mas nada mudou dentro de si. Aliás, talvez tenha mudado. A necessidade de mostrar que era superior a todos os que no passado a haviam humilhado recrudesceu. As ideias de vingança avolumaram-se e tomaram forma. E passaram a acção.

Reviu na sua mente os rostos de todos os colegas que tinham troçado de si. Estavam dispersos, ao sabor do rumo que as vidas tinham tomado. Mas a pouco e pouco conseguiu saber notícias de cada um deles. A pouco e pouco, o ar dócil e recatado que sempre tivera renderam-lhe a confiança de quem abordava. E com essa expressão cândida e inocente foi sabendo em que cidade estava cada um dos seus ex-colegas, onde trabalhavam, onde moravam, se estavam casados ou não… e tudo anotava metodicamente no seu caderninho. Chegara mesmo a seguir durante uma semana dois dos que moravam mais próximo de si. Conhecia-lhes os hábitos, os rituais, os horários, os amigos, os sítios mais frequentados.

Daí até ao passo seguinte foi apenas a distância de um pensamento. Pegou na faca com que o seu pai um dia lhe cortara as longas tranças como castigo, no único dia em que se atrasara dez minutos ao chegar da escola. Calçou luvas e vestiu uma roupa velha de que pudesse desfazer-se depois. Depois foi apenas sair em mais uma noite, apanhar cada um deles num sítio estratégico, escuro e isolado, e castigá-los pelos anos e anos de sofrimento. Acabar com as suas vidas, do mesmo modo como haviam acabado com a sua.

Ali, em mais uma noite, sabia o que se ia passar, planeara tudo como das outras vezes. No bolso apertava o cabo da longa faca. Respirava tranquilamente, como se nada se fosse passar a seguir. Em lugar da monotonia que poderia sentir por estar a repetir uma rotina tão fixamente, sentia-se viva, como poucas vezes se conseguia sentir. Quase alegre, por saber que a justiça se faria uma vez mais.

A próxima vítima surgiu na ponta da rua. Um olhar de estranheza perpassou-lhe pelo rosto ao reconhecê-la, ao que Sarita respondeu com o mais cândido dos sorrisos, ao mesmo tempo que sorrateiramente tirava a faca do bolso e a escondia atrás das costas. Aproximou-se da perplexa mulher, que perseguia haviam já umas semanas, para cumprimentá-la (fosse qual fosse a situação, a cortesia está acima de tudo, tal como os pais lhe haviam ensinado desde garota), fazendo deslizar a faca para o lado do seu corpo…

Ao fundo da rua, espectros azuis começaram a bailar de um modo cada vez mais intenso pelas paredes sombrias dos prédios. Uma sirene rasgou o silêncio da noite fria...