quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Tic-Tac


Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Desafio #12


Liste sete coisas inesquecíveis que viveu até hoje. Depois escreva, durante sete minutos para cada uma,sobre cada uma delas.
(máximo: 400 palavras)




Prescruto inutilmente a multidão na esperança vã de te vislumbrar. Impossível. Faltam sete minutos para o teu comboio chegar. Sete eternidades.
Recosto-me no banco da estação e deixo a cabeça cair para trás. Por cima de mim, um daqueles grandes relógios que todas as estações exibem marca a contagem decrescente que sinto dentro de mim. Fecho os olhos e relembro o que de maravilhoso vivi contigo. A memória dá corda ao tempo…
Tic-tac. E sou transportada para a madrugada em que, no meio da multidão dançando, os nossos braços irrequietos se tocaram. Voaram faíscas que só nós vimos. E o magnetismo entre nós fez perdurar aquele toque.
Tic-tac. E regresso ao amanhecer em que vi o sol nascer por entre o chilreio madrugador dos pássaros e os pingos de orvalho que, da árvore sobre nós, caíam nas nossas cabeças. Envolvida pelos teus braços. Embalada pelas palavras doces que me sussurravas ao ouvido.
Tic-tac. E as imagens do meu espírito transformam-se naquele instante breve em que, num jantar com amigos, me abraçaste secretamente num fugaz momento a sós. Derreti-me nos teus braços, ao mesmo tempo que te repeli com um sorriso, quando alguém entrou na sala.
Tic-tac. E volto a mais um concerto. Mais uma noite quente de Verão, à beira mar. Mais um olhar cúmplice trocado entre dois seres que guardam o segredo de que ninguém desconfia: a paixão que cresce. Cada vez mais difícil de guardar dentro de nós, de resguardar de olhares alheios.
Tic-tac. E em redor de mim aquela rua que assistiu a tantos encontros ocultos. Regresso àquela tarde em que, no embalo de um abraço, surgiu o primeiro beijo há tanto ansiado e tão dificilmente contido. A paixão extravasou numa despedida que se prolongou e que perdura na memória.
Tic-tac. E percorro a areia molhada de mão dada contigo, enquanto, olhamos para trás e vemos as nossas pegadas lado a lado, desejando que se propaguem por um futuro de amor e partilha. Uma onda beija-nos os pés, alheia ao beijo longo que trocamos, com a lua e as gaivotas como únicas testemunhas na praia deserta.
Tic-tac. E do topo do castelo, observo a cidade que reluz numa manhã de Domingo. Mais um dos recantos que me levas a (re)descobrir. Porque ao teu lado cada lugar se transforma num mundo novo, que anseio avidamente percorrer contigo.
Tic-tac. Tic-tac. A contagem decrescente termina. Corro para ti…

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Campeão

Campeonato Nacional de Escrita Criativa


Desafio #11

Recorde o professor mais assustador que já tiveste. Depois imagine como seria um reencontro com ele. (máximo: 400 palavras)



É a prova decisiva. As conversas excitadas e os gritos do público atroam e repetem-se num eco, ampliadas no enorme espaço fechado da piscina.
Ao varrer a bancada com os olhos, reconhece a silhueta encarquilhada do velho sentado no canto mais próximo da meta. De óculos encavalitados na ponta do nariz adunco, espreita avidamente para a piscina. Mas ainda faltam mais de cinco minutos para a partida.
Passaram muitos anos desde a última vez que o viu, mas reconhece-o ao primeiro relance. O professor Martins, o seu primeiro professor de natação.
Filipe não sabia ainda nadar, na sua primeira aula de natação. Mas o professor gritava, como se os sons que expelia com veemência pudessem, miraculosamente, transformá-lo num peixe. Alinhados na beira da piscina, todos os seus colegas saltaram para a água. Mas não o aterrorizado Filipe. Até que uma mão pesada, de ossos salientes, o empurrou. A profundidade era reduzida mas, tomado pelo pânico, Filipe debatia-se horrorizado. Cada segundo parecia durar horas. O terror aumentava. Ia morrer afogado. Por sobre os gritos e gargalhadas das outras crianças, a voz de trovão do professor Martins gritou “Agarra o pau. Olha para cima e agarra o pau”. E lá estava uma vara robusta, à qual lançou a mão. Só quando se sentiu içado de regresso ao chão firme conseguiu voltar a respirar. E só depois dos pais conseguirem outro professor é que aprendeu a nadar.
Passaram 20 anos. Tudo mudou. Não só aprendeu a nadar, como é campeão europeu de natação. É para recuperar o título que vai competir dali a instantes. Mas a visão daquele homem perturba-o.
“Não sabes quem eu sou” – pensa – “mas daqui a pouco eu próprio to direi. E nessa altura vou ter uma medalha ao pescoço e vou mostrar-te que a tua monstruosidade é inútil. Não precisei de ti para chegar onde cheguei!”.
Chega a hora. Respira bem fundo e olha fixamente a água, tentando concentrar-se. Toma posição e, quando soa o sinal de partida, torna-se uno com a água e todos os pensamentos esvaecem. O seu corpo move-se sozinho, em braçadas poderosas.
*
Vitória.
*
Logo que pode, sai do pódio em passos largos. Dirige-se ao canto acima do qual Martins permanece, na bancada. Olha-o nos olhos e ergue a medalha acima da cabeça, exibindo-a com uma expressão de desafio no rosto.
O velho, desconcertado, olha-o pasmado. Quem é aquele homem?

Lua Libertadora

Campeonato Nacional de Escrita Criativa


Desafio #10

Escreva sobre uma das mais fáceis decisões que tiveste de tomar na tua vida.
(máximo: 400 palavras)


Abro os olhos neste espaço em que os dias e as noites são apenas miragens que se confundem entre si. Os primeiros sons matutinos começam a ouvir-se. Os outros doentes que, entre gemidos e queixumes, recebem os primeiros cuidados. As auxiliares que fazem a higiene dos acamados. Enfermeiras e médicos que conversam no corredor.
O meu corpo fraqueja, mas esforço-me por me lavar sozinha. Em frente ao lavatório olho o espelho e mal reconheço o rosto enrugado e o cabelo branco que ele mostra. Até que rapidamente as minhas pernas se começam a debater com a verticalidade e me deixo tombar sobre a cadeira de rodas.
Regresso à cama. Vai começar mais um dia eterno. Mais um dia em que tento esquecer as dores que me percorrem as entranhas e me apontam a eminência do fim. Esperar pela morte é o meu entretém diário. Anseio-a mais do que a receio. Libertação…
Há, no entanto, algo que me faz suportar esta vida torturada de ser que de todos depende. A minha família. Antes de partir, quero saber que todos vão ficar bem. Aí sim posso perder a batalha e ganhar a guerra. Morrer finalmente.

***
Alterno entre o sono e a vigília neste corpo que abandonou o ritmo do sol e da lua. Novamente, o sono regressa. Chega em novelos de consolo. A turvescência dos meus olhos escurece e os meus músculos abandonam a rigidez.
***

E sou novamente uma garota livre que acorda na sua cama, rodeada pelos irmãos que dormem sossegados à sua volta. A menina que era há oitenta anos atrás.
Levanto-me ligeira e, silenciosamente, vou até à janela e abro-a. Uma aragem fria faz os meus cabelos esvoaçar. A lua olha-me e ilumina-me. Convida-me a sair. Alicia-me. “Sai para o mundo e descobre-o nas cores da noite!”
Muitas vezes me fez este apelo insensato. E eu, sensatamente, de todas as vezes recusei. Se aceder não há retorno. E a minha família? Mas estou cansada. As dores são cada vez maiores. Não cessam.
Olho novamente a lua pela janela e a dúvida desvanece-se. Hoje sou a menina de dez anos a sonhar com uma mente de noventa. Sento-me no parapeito, rodo as pernas para fora e um pequeno salto põe os meus pés em contacto com a terra áspera. Finalmente vou ver o que a noite me mostra e o sol me esconde.
Não vou mais acordar…