quinta-feira, 7 de maio de 2009

Dissonância

Olhava para o telefone como se fosse uma televisão. Estático, mal pestanejava.
Ao ausente espectador daquela cena, pareceria que se tratava do decrépito homem-estátua que, procurando mais uns cêntimos para matar a sobriedade, passava horas imóvel em ruas movimentadas, povoadas pela horda de consumidores compulsivos que diariamente procuravam os preços mais baixos de coisas de que não tinham falta nenhuma. Mas não. Estava em casa, sozinho, apenas olhando o telefone.
Se os circuitos eléctricos do seu cérebro lhe permitissem pensar um pouco para além do motivo daquela espera infinita, perguntar-se-ia há quantas horas ali estava, e saberia que já dois ocasos tinham passado, que o terceiro estava bem perto. Aperceber-se-ia de que nada comera e pouco dormira em todo aquele tempo de meditabunda quietude. Notaria as profundas sombras por baixo dos seus olhos. Notaria a barba que crescia insolente. Notaria os pêlos eriçados, arrepiados pelo frio daquele quarto semi-obscuro e gelado. Mas na sua mente nada mais existia para além do telefone, e do anseio receoso pelo momento em que ele tocaria.
Aquela natureza morta retratava uma espartana divisão, em que para além da cadeira de madeira de espaldar alto em que ele se encontrava e do telefone que, em frente dele, jazia no chão, havia apenas uma estante com meia dúzia de livros velhos despenteadamente distribuídos pelas prateleiras de madeira escura, uma pequena mesa redonda de madeira por envernizar, e umas grossas cortinas castanhas, que obscureciam o ambiente, fazendo com que aquele espaço se assemalhasse a uma caverna habitada por um velho e sanguinário ser lucífugo.
Na sua mente apenas havia o telefone, e a antecipação do seu toque. Sabia que o faria saltar da cadeira. Sabia que o ensurdeceria. Mas não desejava outra coisa. Não pensava em mais nada.
Estaria ela viva? E se estivesse, ligar-lhe-ia? E se não estivesse, avisá-lo-iam? E o que faria depois da chamada que aguardava? Correria para ela? Desprezá-la-ia? Choraria a sua morte? Comemorá-la-ia? Continuaria a viver?...
Não encontrava respostas dentro de si, mas continuava à espera, desejando ardentemente que pelo telefone elas chegassem. Que aquelas reticências entre parêntesis se desmoronassem, para que pudesse retomar a sua vida como se elas nunca lá estivessem estado. Para que pudesse voltar a inalar oxigénio, depois de ter sustido a respiração durante tanto tempo.
Um som estridente rasgou o silêncio como um raio rasga os céus plúmbeos da tempestade. A luz do visor do telefone iluminou a sua face.
O primeiro toque... Pareceu-lhe irreal, distante, como se proviesse de outra dimensão, de um outro planeta.
O segundo toque... Encheu-lhe os ouvidos, agrediu-lhe os tímpanos e ficou a ressoar na sua cabeça mesmo depois de ter terminado.
O terceiro toque... Fez todo o seu corpo vibrar.
Estendeu um braço devagar, inclinando-se ligeiramente na direcção do telefone, como se o membro fosse tão pesado que o forçasse a vergar-se para o sustentar. Parou a milímetros de alcançar o auscultador.
O quarto toque... Hesitou ainda.
O quinto toque... Tomado por algo que não sabia o que era, levantou-se, ignorando o protesto doloroso dos músculos, obrigados a mexer-se depois da tão prolongada imobilidade.
O sexto toque... Um passo, dois passos, três passos a caminho da porta da rua, sem olhar para trás. A mão que rodou a maçaneta e a abriu.
O sétimo toque... Ouviu-o já abafado, através da porta que fechara atrás de si, enquanto descia o primeiro patamar de escadas em direcção à rua.
O oitavo toque...

Já não o ouviu.

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