Àquela hora obscenamente matutina, a minha actividade cerebral, próxima do nada, não me permite debruçar sobre o quão assustadora é esta rotina que se arrasta até ao infinito. Aliás, não me permite pensar em nada. Por isso, limito-me a observar o que me rodeia nos minutos de viagem que ainda faltam, alternando entre os meus eternos companheiros de viagem e o filme que passa a alta velocidade na tela que é o vidro frio, ao qual encosto a cabeça, desejando que aquele embalo me devolva de volta ao sono que a tanto custo abandonei. Mas aos poucos, vou despertando.
Passo os olhos em redor, menos por curiosidade pelas pessoas que me rodeiam, do que para confirmar que todas elas estão sentadas nos seus lugares, como se houvesse uma ordem pelas quais devessem estar "arrumadas". Doce ilusão da previsibilidade do mundo...
O autocarro detém-se em mais uma paragem, e entra a mulher que se vai sentar dois bancos à minha frente, de frente para mim. Aparenta ter mais alguns anos que eu. Veste-se com esmero, tudo perfeitamente aprumado - demasiadamente!... - nem uma ponta do seu negro cabelo a esvoaçar. Bree Van de Kamp?!... "Em pessoa!", penso, reprimindo um revirar de olhos e um sorriso sarcástico.
Esta personangem desperta-me a atenção. Deixa-me a imaginar como será a sua vida para além daqueles vinte minutos de autocarro. O que faz, o que pensa, com quem fala... Mas não entendo o porquê desta curiosidade.
Alguém sugere que passemos na livraria no primeiro andar, e lá nos arrastamos, numa anedónica excursão que vai errando molemente pelos corredores, ainda que com destino traçado.
Espalhamo-nos pelas alas da livraria, cada um pelas secções que mais nos interessam. Eu fico-me pela poesia. Não porque me interesse particularmente, mas apenas porque é a secção que fica mais perto da porta, o que me dá a oportunidade de observar quem vai passando por ali. Alterno espreitadelas indiscretas a quem passa, com as páginas desfolhadas de um ou outro livro cujo título me chama a atenção, lendo estrofes dispersas de poemas aleatórios.
"Começamos a vida primeiro com a poesia e depois pela realidade." disse uma voz feminina atrás de mim. Virei-me, em sobressalto, para encarar quem me interpelara. E eis que dou de caras com a mulher que mentalmente vou encaixando num episódio de Desperate Housewives durante aqueles 20 minutos diários. Quase fico de boca aberta. Nunca esperaria encontrá-la ali. E muito menos a citar Schoppenhauer.
Num fragmento de segundo verifico que veste a t-shirt encarnada que identifica os vendedores do estabelecimento. Olha-me com um sorriso simpático. Mas no seu olhar não vislumbro qualquer centelha de reconhecimento. Não sabe quem eu sou. Não me conhece como eu a conheço, do nosso partilhado périplo diário.
"Mas, segundo ele, era com a realidade que deveríamos começar, e não com a poesia, para evitar a infelicidade da juventude." - respondo, talvez de modo um pouco pedante, mas com orgulho por o elemento surpresa daquele contacto não me ter toldado o raciocínio.
"Sim e concordo com ele. Mas não quer dizer que uma dose de ilusão seja má. Ao menos ajuda-nos a sobreviver aos dias maus." Enquanto falava, a minha sorridente interlocutora pega num dos livros e começou a falar-me de um poema a este propósito: "Poema para Iludir a Vida". Fernando Namora.
Sem que eu tenha tempo de frasear a questão que me baila no espírito ("Então, mas se aceitarmos a vida como ela é não nos poupamos ao esforço da ilusão?!"), oiço o meu nome perto da porta. Hora de ir embora. Despeço-me com um sorriso vago à vendedora da livraria e saio. Ainda sem palavras. Ainda sem acreditar na mesma conversa com aquela personagem coabitaram Namora e Schoppenhauer.
No dia seguinte ela senta-se no mesmo banco no autocarro...
Texto escrito por mim para a Fábrica de Histórias
Como terão sido as viagens de autocarro nos dias seguintes?
ResponderEliminar“Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje
[o fim
Não tenho tido grande vontade de escrever… Tenho tentado ler por «aí», mas as palavras não me tocam. Então, num impulso que me é tão próprio, invadi o teu espaço sem pedir, li os teus(alguns) sonhos e fantasias, nada vazias. Era isto que precisava, emoções que me tocassem, palavras que caminhassem perto do meu trajecto imaginário, daquele percurso que desconheço o destino e ao qual me nego chegar. Obrigado por um dia teres feito um blog. Feliz, eu, por um dia ter tropeçado nele.
Já espreitei o tema da Fábrica, desta semana. Aquela imagem, és tu…
Cláudio,
ResponderEliminarse a ti não te apetece escrever, já a mim os dedos fervilham e as ideias não páram, mas o relógio também não, e eu não tenho sido capaz de preencher este vazio com novas fantasias.
O tema da fábrica é tentador. Espero que desta vez o relógio esteja do meu lado...
Tens um post exactamente sobre isto, o tempo que não pára. Não podia concordar mais contigo.
A vida sobrepõe-se aos sonhos, e o tempo impiedoso não nos permite fazer uma pausa na primeira para tentar agarrar os segundos...
Quero sonhar outra vez...
Obrigada por partilhares os que vou conseguindo pôr aqui... :)