É de manhã. Acordo para a dura realidade que já nos últimos dias receava: é véspera de Natal.
Estranho o não consiguir sentir-me feliz. Estranho que os supostamente entusiasmantes preparativos não me entusiasmem. Estranho que o rebuliço e o burburinho das pessoas azafamadas me irrite, em vez de me divertir.
Estranho o não consiguir sentir-me feliz. Estranho que os supostamente entusiasmantes preparativos não me entusiasmem. Estranho que o rebuliço e o burburinho das pessoas azafamadas me irrite, em vez de me divertir.
Mas porque é que tenho que estar feliz no Natal?
Basta apenas um olhar atento para perceber que o "espírito de Natal" não é mais do que uma manobra comercial bem conseguida com que os media nos entopem a toda a hora. Senão vejamos: ligamos a televisão e o que vemos? Anúncios, filmes, jingles, músicas,... tudo com a mesma mensagem subjacente: no Natal todos temos que andar a cantarolar músicas palermas, muitas delas claramente importadas de outros países e que, apesar de nem sempre compreendermos o seu significado, cantamos porque é Natal; no Natal todos temos que andar de cara alegre e felizes, enquanto compramos dezenas senão centenas de objectos totalmente inúteis para nós e para os outros, pelo único motivo de que é suposto oferecermos presentes, mesmo que saibamos que nos próximos meses sobreviveremos com dificuldade por ficarmos sem dinheiro até para pôr uma côdea rija de pão em cima da mesa; no Natal temos que nos reunir com toda a família, ainda que isso implique juntar 200 pessoas num T0 sem janelas; no Natal temos que comer tudo o que de mais calórico existe à face da terra, e em quantidades industriais, apesar de sabermos que daqui a uns anos sofreremos as consequências de tal alarvidade...
Então e se não me apetecer cantar? Então e se não me apetecer gastar os parcos tostões que ganho em futilidades que não aprecio e ninguém quer? E se eu não tiver família para reunir, ou pura e simplesmente não tiver paciência para aturar aquela que me caiu em sorte? Como o conformismo deve ser doce...
Não obstante estas ruminações que me ocupam o espírito, e porque a pressão social é poderosíssima e me domina completamente, os deveres familiares impõem-se e sou enviada às dez da manhã para um hipermercado, às compras para a ceia de Natal. Talvez o rebuliço da Quadra melhore o meu humor taciturno, penso para mim mesma. Ingénua...
Assim que estaciono e saio do carro, presencio uma cena caricata. Um homem que arruma os seus infindos sacos no porta-bagagens do carro, ofendido talvez pela excessiva proximidade com que um táxi passa por si, vira-se para trás dizendo graciosamente:
- O que é que foi ó? Tens os cornos grandes?
- Cornos tens tu, ó meu grande filho da puta!- responde delicadamente o taxista, ao que o homem retorque
- O que é que foi? Sai mas é do carro se és homem, ó meu paneleiro! - mas apesar do repto, já o táxi tinha avançado.
Entro no hipermercado, ainda a digerir esta deliciosa troca de mimos, e sou absorvida por um enxame de gente que se degladia por um bolo rei, quase os roubando das mãos uns dos outros, como se a sua vida dependesse disso.
Com estes exemplos do espírito de abnegação e boa vontade que invade os corações humanos nesta quadra festiva, fico cada vez mais convicta de que não há nenhum motivo especial para estar mais feliz hoje do que ontem.
E há uma pergunta que berra dentro de mim: PARA ONDE FOI O VERDADEIRO ESPÍRITO DE NATAL?
Sem comentários:
Enviar um comentário