domingo, 24 de outubro de 2010

Espaço

Sem saber ainda para onde ia, vesti as minhas quase seculares calças de ganga, testemunhas de tantos outros momentos iguais, uma camisola qualquer e os ténis mais confortáveis que encontrei. Noutra ocasião, ter-me-ia preocupado em verificar se as cores combinavam, em colocar uns brincos e adornar o rosto com fiapos de cor. Mas não naquele dia. A necessidade de me expor àquele inesperado sol de inverno gritava imperiosa dentro de mim, tornando insignificante qualquer vaidade que pudesse emergir naquele momento. Saí e enfiei-me dentro do carro, cortando curvas e ignorando sinais vermelhos até chegar à praia que, sem eu me ter dado conta, sempre fora o destino marcado no meu inconsciente para aquele dia de mornas delícias.


Caminhei ao longo da praia, segurando os ténis nas mãos. Sentindo a espuma fria lambendo-me os pés, parecia ter entrado noutra dimensão. Parecia ter deixado o mundo em que habitava todos os dias e ter aterrado num planeta em que apenas a paz existia. Nada me perturbava. Nada de mau existia.

Num recanto da minha mente sabia que outras pessoas passeavam espaçadamente por ali, tal como eu. Mas estava demasiadamente extasiada para que a minha consciência recaísse sobre elas. Apenas existia eu e a natureza ao meu redor.


Era destes momentos, por breves que fossem, que eu extraía energia para voltar a enfrentar os dias de bulício e irritações. Recarregava forças e alvejava o espírito para regressar ao meu mundo como uma nova mulher, capaz de tudo.


Já o fizera antes e já fazia parte de mim. Simplesmente desaparecia do mundo e lá ia eu, ser apenas eu. Deixar de ser mãe, esposa, trabalhadora e ser apenas EU. O ser com o qual apenas eu convivia incessantemente haviam 35 anos.

Precisava daquilo. De estar sozinha, pensar na vida sendo eu a única variável. Libertar-me de todas as cargas que se iam acumulando em cima dos meus ombros. Dos ruídos que ensurdeciam o meu espírito até eu não conseguir ouvir-me.
***
- Onde estiveste?
- Por aí. Precisava de estar sozinha.
- E deixas-me a mim e aos teus filhos sem sequer dizeres onde foste? Sem sabermos se está tudo bem? Significamos assim tão pouco para ti?
- Não. Mas precisava muito de estar sozinha. De me encontrar.
- De te encontrares? A vida que temos aqui, a nossa família, não te faz feliz?
- Não é nada disso. Mas precisava de estar só comigo mesma. Pensar na minha vida, na nossa vida, sem televisões aos berros, crianças a correr, telefones a tocar. Não compreendes? Às vezes temos que estar sozinhos.
- Não, não compreendo. Só vejo que ao agires assim mais parece que não gostas de nós. Que estás infeliz e precisas muito de te livrares de nós. De mim. Isso não é amor. Isso é egoísmo, sabes disso!!!
- Não, não é egoísmo. E o facto de querer estar sozinha nada diz acerca do que sinto pelo meu marido e pelos meus filhos. Apenas diz que eu sou uma pessoa que tem necessidades e que uma delas é, às vezes, estar sozinha!
- Não é o que parece. A última vez que estive casado com alguém e comecei a precisar de estar sozinho, divorciei-me. Estava infeliz e não podia suportar a companhia da minha mulher. Sabes disso, já te contei a história.
- Mas eu não sou tu. Posso amar alguém, estar feliz com alguém e ainda assim precisar de estar sozinha. É assim tão difícil de compreender? É assim tão difícil de perceber que antes de ser tua mulher, mãe dos nossos dois meninos, era já uma pessoa e que continuo a sê-lo?
- A minha mãe sempre disse que um casal feliz é um casal que faz tudo em conjunto. Um casal que não se separa em nenhuma ocasião.
- Talvez por isso ela tivesse sido tão infeliz...?
***
Não me parece que volte a casar-me. Estou cansada de não ser eu para agradar a outro. Mas só o volto a fazer se houver espaço. Para respirar...
História fictícia escrita por mim para a Fábrica de Histórias.

2 comentários:

  1. Os problemas entre casais nunca assentam sobre este ou aquele pormenor em particular... eu por exemplo tinha toda a liberdade do mundo o que não me impediu de um dia sentir que estava presa, é verdade, pois estamos sempre um pouco presos mesmo quando menos esperamos, e algo que nos é tão simples, é um bicho de sete cabeças para a outra pessoa.

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  2. Mais do que a falta de espaço, quis que passasse com esta história a inutilidade de alguém deixar de ser o seu EU para poder manter uma relação. Mas claro que, como diz, este Universo é bem mais complexo do que o que uma qualquer história com meia dúzia de palavras poderá jamais abarcar.

    Obrigada por passar aqui. Obrigada por ler. Fico feliz por esta tão simples história ter merecido a sua atenção e reflexão!

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