domingo, 21 de março de 2010

Alguém ajuda os que ajudam?

Please don’t let me be misunderstood”. Eram um mantra a ressoar na minha mente, aquelas palavras que a voz quase andrógina que Nina Simone cantava. Não, eu não queria ser incompreendida. Queria que ele entendesse o porquê de eu estar ali, àquela hora. Vi a secretária dele sair, e subi. Girei o puxador da porta. Estava aberta. Aquela música preenchia o ambiente. Os meus olhos demoraram ainda a habituar-se ao manto de penumbra que envolvia a sala. Até que percebi que, como eu queria, ele estava ali. Mas não como eu esperava.

Com a cabeça pendendo sobre o queixo, parecia adormecido. Mas não certamente um sono natural. Uma banda, talvez feita de borracha, apertava ainda um braço mole e meio arroxeado. Em cima da mesa uma seringa e mais dois ou três objectos que não deixavam dúvida sobre o que ali se tinha passado, e sobre a natureza daquele vespertino sono do meu terapeuta. Heroína.

Com uma aguda sensação de que não devia estar ali, comecei a recuar. Dei dois ou três passos, mas com a atrapalhação, acabei por encalhar num candeeiro que caiu ao chão, com um estardalhaço que me fez encolher e olhar novamente para ele, receando que tivesse acordado. E de facto, levantou a cabeça, e entreabriu os olhos meio enevoados. Franziu o sobrolho ao cruzar o olhar com o meu. Mas olhou-me sem me ver. E a cabeça voltou a descair lentamente sobre um ombro, enquanto adormecia novamente. Não perdi tempo. Voltei-me e saí do gabinete a correr. Apavorada. Aturdida. Não sabia o que pensar. Ele não era quem eu julgava que fosse.

Mas porquê? Como? O homem que me ajudara a encontrar um equilíbrio na vida. A quem eu devia todas a minhas mais recentes conquistas. Ali, prostrado. Um cadáver ainda por morrer.

Na verdade, não fora o lugar em que o vi, nem o teria reconhecido. O cabelo desgrenhado. A barba por fazer. O rosto emaciado e sem expressão. Enormes olheiras escuras. Parecia mil anos mais velho do que os pouco mais de quarenta que aparentava habitualmente. Já o conhecia haviam quase dois anos. Conhecia?!...

Iniciei a terapia depois de ter sido diagnosticada uma doença grave ao meu namorado. Foi a gota de água que virou o meu mundo do avesso. Um mundo que já navegava em águas revoltas. Com um emprego que em nada me preenchia e com uma família que pouco mais fazia do que criar-me problemas, perder a minha única tábua de salvação parecia mais do que eu conseguiria tolerar. E a depressão não tardou.

A conselho de uma amiga, procurei-o. E meia dúzia de sessões mais tarde, já eu começava a ver a luz ao fundo do túnel. Por vezes, naquelas sessões, o doutor pouco falava. Eu costumava perguntar-me porque é que eu lhe estava a pagar, se na maior parte do tempo parecia que eu estava ali abandonada comigo própria. Mas algumas semanas mais tarde, já eu começava a vislumbrar uma ou duas centelhas de força para me ajudar a resistir. E a tentar mudar. Ao longo dos meses aquela hora semanal começou a tornar-se o meu refúgio. Um santuário. E grão a grão fui-me reconstruindo.

Aos poucos comecei a aperceber-me que não eram apenas as consultas que eu aguardava com impaciência durante uma semana. Era a possibilidade de estar com ele. O homem que me fez ver o mundo com outros olhos. Passava toda uma semana a pensar nele, a sonhar com ele e a ansiar o momento que o veria novamente. Pena serem uns tão curtos cinquenta minutos. Dava-me (bem, ainda dou!) mesmo ao trabalho de me vestir o mais sensualmente possível, dentro do que a descrição permite. E ele chegou mesmo a reparar nisso, tecendo um qualquer comentário sobre a minha nova forma de vestir.

Um dia não me contive. Tive que lhe falar do que sentia por ele. Era já forte demais para ignorar. Mas a resposta foi uma desilusão. Transferência e contra-transferência. Falou como se todas as suas pacientes se apaixonassem loucamente por si, e eu fosse apenas mais uma. Insignificante.
Tinha que voltar a falar com ele, para que percebesse que não sou igual às outras. Que o amo realmente. Por isso quis falar com ele hoje. Mas depois do que vi já nem sei o que pensar.

O meu terapeuta viciado em heroína? Como é que é possível? Um homem tão ponderado, tão centrado, quase um sábio… Ali prostrado. Decadente. Destruído. Será que não foi capaz de se livrar do sofrimento dos outros? Que fantasmas o assombram? Que dor encerra em si?

Não sei o que fazer. Nem sei se ele percebeu que eu estive ali. Mas ver o homem por detrás do terapeuta aguçou-me a vontade de o conhecer. Acicatou a minha curiosidade. Tenho que pensar numa maneira de chegar até ele. Aproximar-me.
Um dia destes…
Amanhã, talvez…
História escrita por mim para a Fábrica de Histórias

3 comentários:

  1. As mulheres muito gostam de desafios... de homens complicados... de "bad boys"...

    A ver se a história leva uma reviravolta p'ró melhor!!!

    Bem conseguida!

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  2. Interessante, muito interessante mesmo. Bem escrita.
    Parabéns.
    Luís

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  3. Obrigada a quem passa por aqui pelos simpáticos elogios! :)

    Quanto à continuação, os finais felizes não são a minha especialidade, e neste caso, não consigo antever um deles. Mas quem sabe a inspiração não me leva para esses caminhos?!...

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