domingo, 6 de fevereiro de 2011

Asas

Tudo começou com uma dor nas costas. Como sempre fui praticante de desporto, pensei que fosse apenas o meu corpo a acusar excesso de esforço (o que, diga-se, seria bem provável). Ignorei-a. Mas com o passar do tempo, a dor não desapareceu. Pelo contrário, foi crescendo gradualmente, até ser impossível ignorá-la. Tomou conta de mim insidiosamente. Num tenebroso crescendo. Deixei de conseguir encostar-me ao sofá, de praticar desporto, de domir à noite. Até que respirar se tornou um acto de puro sacrifício.
Impunha-se uma ida ao médico. Que ficou estupefacto com o que viu. Sem nenhuma explicação razoável, na radiografia viam-se duas massas ósseas imediatamente abaixo das omoplatas, simétricas, uma de cada lado da coluna. Ninguém conseguia imaginar do que tratasse. Depois de muitos exames, a origem do meu estranho mal era desconhecida. E ninguém conseguiu imaginar melhor tratamento para além de medicamentos para as dores. Que não resultaram.
As dores eram insuportáveis. Já nem conseguia sair de casa. Andava de um lado para o outro, porque nem sentada nem de pé conseguia encontrar uma posição em que as dores fosse menores. Os medicamentos atordoavam-me, mas nem assim aquela dor me abandonava.
Numa dessas minhas deambulações pela casa, ao passar em frente ao espelho notei pela visão periférica algo estranho no meu perfil. Dei um passo atrás e fiquei atónita. Através da camisola de pijama, justa, notava-se uma protuberância. Exactamente no sítio onde a dor me atacava. Exactamente no sítio onde se viam as tais formações ósseas no RX. Virei-me de costas para o espelho e espreitei por cima do ombro. Não era uma protuberância, mas duas. Simétricas. Entrei em pânico. Gritei. Estava a ficar deformada por algo desconhecido que nascera dentro de mim. Como seria a minha vida a partir dali? Não haveria mais desporto, não haveria mais passagens de modelos nem sessões de fotografias, que haviam sido o meu sustento até aí. Era o fim de minha vida. Gritei até não ter mais voz.
Não estava ninguém em casa. Ninguém me ouviu.
Os dias e semanas que se seguiram surgem enevoados na minha memória. Entre medicamentos para as dores, comprimidos para dormir e tranquilizantes, usei de tudo a que conseguia jogar a mão para atenuar a dor e me esquecer das minhas recém aparecidas deformidades. Poucos foram os momentos de lucidez que tive nesses tempos, porque poucas são as imagens que guardo deles. Dores lancinantes, à mistura com uma angústia profunda por achar que jamais voltaria a ser como dantes. E, claro, uma ou outra amedrontada mirada ao espelho, apenas para confirmar que a minha deformidade crescia a cada dia que passava.
Deixei de comer, deixei de sair da cama. Já só aguardava o momento em que a morte me livraria deste tormento.
Até que esta manhã, quando acordei, me apercebi que mesmo sem ter tomado qualquer
medicação, as dores haviam desaparecido. Deitada de lado, na cama, senti um peso diferente nas costas, que parecia tentar unir-me com o colchão. Reparei nos farrapos brancos da minha camisola espalhados pela cama. Teria sido eu a rasgá-la? Não me recordava de tal.
Virei-me de barriga para baixo, e com as mãos empurrei o meu corpo para cima. Nada doía. Apenas aquele peso desconfortável, agora em cima de mim. Num movimento rápido, tirei as pernas para fora da cama e, pela primeira vez em semanas, pousei os pés no chão. Parei um pouco, a sentir o frio do chão a entrar pela pele, como se a mostrar-me que estava viva, apesar de ter desejado não o estar durante tanto tempo. Finalmente, ergui-me, desajeitadamente porque aquele peso estranho teimava em puxar-me para trás. Em desequilibrar o meu centro de gravidade.
Foi quando me virei em direcção à porta do quarto, que notei algo de diferente. Um vulto ao meu lado virou-se num movimento síncrono com o meu e, imediatamente a seguir, o candeeiro da mesa de cabeceira foi derrubado e estilhaçou-se no chão. Assustada, olhei em volta e os meus olhos recaíram sobre o espelho. E só aí percebi o que se passava.
Duas enormes asas irrompiam das minhas costas. Enormes estruturas de osso, que transpareciam por entre a membrana translúcida de pele que as revestiam. Semelhantes às asas de um morcego, de um gigante morcego, estas asas partiam das minhas costas, exactamente no ponto que tanto me doera antes, e prolongavam-se lateralmente. Sem grande esforço consegui enrolá-las em torno de mim. Uma imitação das gárgulas de pedra que, com olhos vigilantes, repousam os seus corpos de pedra nos edifícios da cidade. Concentrei-me um pouco, atónita com tudo aquilo, e percebi que, como um braço ou uma perna, as asas obedeciam ao meu comando. Primeiro consegui abri-las novamente, e depois consegui que abanassem para a frente e para trás, como se me preparasse para um voo. E, de facto, o que aconteceu foi que, quando me verguei sob o seu peso, o meu corpo flutuou por instantes até que, aterrorizada, perdi o controlo do seu movimento e caí estatelada no chão.
Não quis acreditar, aliás, ainda não acredito. Benção ou maldição? Doença ou não? A verdade é que me transformei em algo que não sei o que é. Ainda olho apavorada o espelho, sem saber o que sou. Super-mulher? mulher-morcego? Ou simplesmente uma aberração da natureza? Haverão outros como eu? Não sei. Não há resposta para nenhuma das minhas perguntas.
A noite está a cair. Anseio pela escuridão protectora, para sair para a rua, à hora em que já ninguém passa e posso, sozinha, ensaiar novos movimentos, perceber a extensão das mudanças operadas em mim. Percebi que agora posso voar. Consegui alcançar o sonho que o Homem almeja desde o início da eternidade. Posso voar.
As consequências de tal fenómeno são ainda nebulosas para mim. Não consigo imaginar como será a minha vida a partir do dia de hoje. Assusta-me saber que sou uma aberração, diferente dos outros humanos. Mas sou também alguém especial, capaz de fazer o que mais ninguém consegue. Poderei dar cambalhotas no ar, voar livremente, competir com os pássaros velozes. Não é esse o sonho de todos os seres humanos?
Não sei a que se deve esta transformação. Não sei se algum dia terei respostas para tantas perguntas. Mas sei que hoje foi o dia em que as páginas do livro da minha vida se viraram. E que tenho uma página branca à minha frente, pronta para receber o que, com a minha mão, eu queira nela escrever...
História fictícia escrita por mim para a Fábrica de Histórias

4 comentários:

  1. Mágicas as asas da imaginação criativa de quem escreve assim...Sublimes os vôos de quem lê.

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  2. É mesmo para isso que escrevemos, não é? Para voarmos e, com alguma sorte, levarmos alguém que aprecie viajar connosco! :)

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  3. Sem dúvida, é mesmo para isso!Podem controlar tudo, mas a nossa mente,sonhos,imaginação, serão sempre livres.

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  4. Podem controlar tudo? Não, não podem. Nós às vezes é que os deixamos pensar que sim!!! :)

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