“És diferente. Amo-te exactamente como és!”. Foram estas as palavras do meu marido quando lhe contei sobre o meu “dom”. São estas as palavras que ele faz questão de honrar e demonstrar a cada dia que passa. O que faz dele o meu pilar de força, quando o mundo parece abater-se sobre os meus ombros. Uso esta palavra – “dom” - apenas por não saber que outra coisa chamar a esta peculiaridade que trago comigo desde o dia em que fiz doze anos de idade.
Foi nesse dia que, ao sair à rua, percebi que repentinamente, a minha visão mudara. De repente, não via apenas as pessoas que passavam. Em frente a cada uma delas, estendia-se como que uma tela translúcida, na qual se podiam ver outros cenários, pessoas, objectos que nada tinham a ver com a realidade que nos circundava. Como se nessa tela estivesse a ser projectado um filme em que a personagem principal era a pessoa que eu via por detrás dela. Aterrorizada, sem perceber o que se passava, corri para casa e tranquei-me no quarto, a chorar. Estaria a enlouquecer? O que era aquilo?
Foi a minha mãe que, depois de me acalmar, explicou o que se passava. Chamou-lhe um “dom” que percorria a nossa família desde os seus primórdios ancestrais. De duas em duas gerações nascia na nossa família uma criança com uma visão especial, capaz de ler os sonhos e desejos mais íntimos de cada pessoa. As cenas que eu via naquelas telas apenas visíveis para mim não eram mais do que representações dos sonhos das pessoas a quem as telas pertenciam. Os seus mais íntimos desejos e sonhos. Utopias para seres com vidas convencionais. A minha avó fora a última portadora daquele dom.
Foi nesse dia que, ao sair à rua, percebi que repentinamente, a minha visão mudara. De repente, não via apenas as pessoas que passavam. Em frente a cada uma delas, estendia-se como que uma tela translúcida, na qual se podiam ver outros cenários, pessoas, objectos que nada tinham a ver com a realidade que nos circundava. Como se nessa tela estivesse a ser projectado um filme em que a personagem principal era a pessoa que eu via por detrás dela. Aterrorizada, sem perceber o que se passava, corri para casa e tranquei-me no quarto, a chorar. Estaria a enlouquecer? O que era aquilo?
Foi a minha mãe que, depois de me acalmar, explicou o que se passava. Chamou-lhe um “dom” que percorria a nossa família desde os seus primórdios ancestrais. De duas em duas gerações nascia na nossa família uma criança com uma visão especial, capaz de ler os sonhos e desejos mais íntimos de cada pessoa. As cenas que eu via naquelas telas apenas visíveis para mim não eram mais do que representações dos sonhos das pessoas a quem as telas pertenciam. Os seus mais íntimos desejos e sonhos. Utopias para seres com vidas convencionais. A minha avó fora a última portadora daquele dom.
Vi-me de repente transformada num ser diferente. Uma aberração. Sempre que olhava em volta, telas e telas, sonhos e sonhos. Duas realidades sobrepostas apareciam sempre em simultâneo diante dos meus olhos. A realidade exterior e a realidade dos sonhos.
Acabei por me habituar a tudo aquilo. Aliás, ao fim de um tempo, conhecer os sonhos mais íntimos de quem me rodeava acabou mesmo por me divertir. Esta é uma capacidade perigosa quando posta à disposição de uma adolescente sem consciência das suas implicações. Naturalmente que a minha popularidade entre os colegas do liceu não beneficiou de tudo aquilo. Sobretudo quando os segredos deste e daquele começaram a ser revelados por mim sem dó nem piedade nem qualquer espécie de subtileza, apenas para meu divertimento. Não tardou que me apelidassem de “bruxa” e me pusessem de parte.
Felizmente a idade traz maturidade. E a maturidade ajuda-nos a ver o que nos rodeia de outra forma. Não, não perdi o meu dom. Mas aos poucos comecei a entendê-lo de outra forma. Saber os sonhos dos outros, por si só, valia de pouco. Se aquela capacidade nascera em mim, algum propósito teria que ter. Concretizar esses sonhos! Ajudar quem os tinha a alcançá-los. Com dezasseis anos, foi esta a missão que me atribuí a mim mesma. À medida que passava pelas pessoas na rua, abordava-as, falava-lhes dos seus sonhos e de como eu achava que deveriam proceder para alcançá-los. As reacções foram predominantemente negativas. Muitos repeliam as minhas visões dos seus sonhos, como se não fossem verdadeiras. Outros mostravam-se profundamente incomodados com a minha intrusão no mais íntimo de si. Outros ainda, não reconheciam qualquer legitimidade aos conselhos de uma adolescente que não conheciam.
Desanimada, confusa em sem rumo, desisti deste projecto. Fiquei à deriva sem perceber que sentido fazer de tudo o que eu era.
Mais uma vez, foi a minha mãe que me indicou o rumo. Num final de tarde em que me sentava junto à janela, reflectindo sobre tudo isto, ela apareceu junto de mim com um embrulho de papel pardo, acastanhado pelo tempo, enlaçado por uma fita de cetim azul já meio desbotado. Pertencera à minha avó, que incumbira a minha mãe, antes de morrer, de passar ao próximo portador do dom quando achasse que a hora era apropriada. E assim fez a minha mãe. Vendo-me triste e sem rumo, considerou que aquele era o momento.
Abri o embrulho para me deparar com um velho livro de capa de pele castanha, sem qualquer inscrição ou título. Os cantos e bordos gastos denunciavam a idade daquele volume, tal como as páginas frágeis e amarelecidas que se me abriram à medida que o desfolhava. Aquele livro percorria a minha família há incontáveis gerações. Aparentemente, um antepassado nosso debatera-se com o mesmo dilema que eu e encontrara no mundo do oculto as respostas às suas questões.
Parecia um livro de receitas. Mas estas eram receitas muito peculiares. Para cada sonho era indicada, passo a passo, uma ou mais formas de o concretizar. Encantamentos, feitiços e mezinhas. De um modo geral, todos os encantamentos apresentados funcionavam da mesma maneira. Era necessário, depois de identificar o sonho da pessoa a quem queria ajudar, obter qualquer coisa dessa pessoa – um fio de cabelo, uma fibra da sua roupa, um lenço, um jornal que tenha lido, uma moeda. Com este objecto, e concentrando-me no sonho que me era conhecido, passava ao encantamento, que variava de acordo com o tipo de sonho: jogar o objecto no mar, queimá-lo, expô-lo ao luar. As possibilidades eram inúmeras.
Afinal os meus colegas de liceu tinham razão: eu estava prestes a transformar-me numa “bruxa”. Deitei imediatamente mãos à obra. Depois de ler o livro, explorar todos os encantamentos e as anotações que foram sendo feitas pelos sucessores do seu autor, comecei a colocá-los em prática até que deixei de precisar de olhar o livro para os executar.
Desde essa altura, em paralelo com esta face mais obscura da minha existência, desenvolvi uma “vida normal”. Prossegui os estudos e hoje sou advogada. Na faculdade conheci o amor da minha vida, e já nos casámos há dois anos. É no caminho para o escritório, no centro da cidade, que escolho as pessoas cujos sonhos realizarei. É de madrugada, no metro, quando os passageiros ensonados não cortaram ainda totalmente o seu laço com o mundo dos sonhos, que melhor consigo perceber o que desejam. O que anseiam. Visto que a essa hora o metro é uma gigante lata de sardinhas, é sem dificuldade que consigo obter os objectos necessários para os encantamentos sem ser notada.
Os resultados apenas posso intuir ou interpretar pelas alterações de comportamento daquelas pessoas. Ou deixam de aparecer no metro. Ou aparecem um dia com um enorme sorriso que não conseguem disfarçar. Ou começam a mostrar alterações subtis na roupa, no andar, no modo como erguem a cabeça para enfrentar o mundo. Só eu percebo essas alterações porque só eu sei o que se passou.
Nunca ninguém chega a saber a origem da concretização dos seus sonhos. As minhas acções passam totalmente despercebidas, porque ninguém pode sequer imaginar que são possíveis. Mas isso pouco importa. A gratidão que me pudessem demonstrar seria totalmente desnecessária. Basta-me saber que fiz alguém feliz. Altruísmo? Não! É apenas uma necessidade premente criada por uma peculiaridade hereditária que me transformou, acidentalmente, numa bruxa.
Acabei por me habituar a tudo aquilo. Aliás, ao fim de um tempo, conhecer os sonhos mais íntimos de quem me rodeava acabou mesmo por me divertir. Esta é uma capacidade perigosa quando posta à disposição de uma adolescente sem consciência das suas implicações. Naturalmente que a minha popularidade entre os colegas do liceu não beneficiou de tudo aquilo. Sobretudo quando os segredos deste e daquele começaram a ser revelados por mim sem dó nem piedade nem qualquer espécie de subtileza, apenas para meu divertimento. Não tardou que me apelidassem de “bruxa” e me pusessem de parte.
Felizmente a idade traz maturidade. E a maturidade ajuda-nos a ver o que nos rodeia de outra forma. Não, não perdi o meu dom. Mas aos poucos comecei a entendê-lo de outra forma. Saber os sonhos dos outros, por si só, valia de pouco. Se aquela capacidade nascera em mim, algum propósito teria que ter. Concretizar esses sonhos! Ajudar quem os tinha a alcançá-los. Com dezasseis anos, foi esta a missão que me atribuí a mim mesma. À medida que passava pelas pessoas na rua, abordava-as, falava-lhes dos seus sonhos e de como eu achava que deveriam proceder para alcançá-los. As reacções foram predominantemente negativas. Muitos repeliam as minhas visões dos seus sonhos, como se não fossem verdadeiras. Outros mostravam-se profundamente incomodados com a minha intrusão no mais íntimo de si. Outros ainda, não reconheciam qualquer legitimidade aos conselhos de uma adolescente que não conheciam.
Desanimada, confusa em sem rumo, desisti deste projecto. Fiquei à deriva sem perceber que sentido fazer de tudo o que eu era.
Mais uma vez, foi a minha mãe que me indicou o rumo. Num final de tarde em que me sentava junto à janela, reflectindo sobre tudo isto, ela apareceu junto de mim com um embrulho de papel pardo, acastanhado pelo tempo, enlaçado por uma fita de cetim azul já meio desbotado. Pertencera à minha avó, que incumbira a minha mãe, antes de morrer, de passar ao próximo portador do dom quando achasse que a hora era apropriada. E assim fez a minha mãe. Vendo-me triste e sem rumo, considerou que aquele era o momento.
Abri o embrulho para me deparar com um velho livro de capa de pele castanha, sem qualquer inscrição ou título. Os cantos e bordos gastos denunciavam a idade daquele volume, tal como as páginas frágeis e amarelecidas que se me abriram à medida que o desfolhava. Aquele livro percorria a minha família há incontáveis gerações. Aparentemente, um antepassado nosso debatera-se com o mesmo dilema que eu e encontrara no mundo do oculto as respostas às suas questões.
Parecia um livro de receitas. Mas estas eram receitas muito peculiares. Para cada sonho era indicada, passo a passo, uma ou mais formas de o concretizar. Encantamentos, feitiços e mezinhas. De um modo geral, todos os encantamentos apresentados funcionavam da mesma maneira. Era necessário, depois de identificar o sonho da pessoa a quem queria ajudar, obter qualquer coisa dessa pessoa – um fio de cabelo, uma fibra da sua roupa, um lenço, um jornal que tenha lido, uma moeda. Com este objecto, e concentrando-me no sonho que me era conhecido, passava ao encantamento, que variava de acordo com o tipo de sonho: jogar o objecto no mar, queimá-lo, expô-lo ao luar. As possibilidades eram inúmeras.
Afinal os meus colegas de liceu tinham razão: eu estava prestes a transformar-me numa “bruxa”. Deitei imediatamente mãos à obra. Depois de ler o livro, explorar todos os encantamentos e as anotações que foram sendo feitas pelos sucessores do seu autor, comecei a colocá-los em prática até que deixei de precisar de olhar o livro para os executar.
Desde essa altura, em paralelo com esta face mais obscura da minha existência, desenvolvi uma “vida normal”. Prossegui os estudos e hoje sou advogada. Na faculdade conheci o amor da minha vida, e já nos casámos há dois anos. É no caminho para o escritório, no centro da cidade, que escolho as pessoas cujos sonhos realizarei. É de madrugada, no metro, quando os passageiros ensonados não cortaram ainda totalmente o seu laço com o mundo dos sonhos, que melhor consigo perceber o que desejam. O que anseiam. Visto que a essa hora o metro é uma gigante lata de sardinhas, é sem dificuldade que consigo obter os objectos necessários para os encantamentos sem ser notada.
Os resultados apenas posso intuir ou interpretar pelas alterações de comportamento daquelas pessoas. Ou deixam de aparecer no metro. Ou aparecem um dia com um enorme sorriso que não conseguem disfarçar. Ou começam a mostrar alterações subtis na roupa, no andar, no modo como erguem a cabeça para enfrentar o mundo. Só eu percebo essas alterações porque só eu sei o que se passou.
Nunca ninguém chega a saber a origem da concretização dos seus sonhos. As minhas acções passam totalmente despercebidas, porque ninguém pode sequer imaginar que são possíveis. Mas isso pouco importa. A gratidão que me pudessem demonstrar seria totalmente desnecessária. Basta-me saber que fiz alguém feliz. Altruísmo? Não! É apenas uma necessidade premente criada por uma peculiaridade hereditária que me transformou, acidentalmente, numa bruxa.
História de ficção escrita por mim para a Fábrica de Histórias
Eu queria encontrar palavras para definir a tua história, mas tropeço no meio do enredo e vejo-me lá, no metro.. e imagino cada pedaço da vida da personagem que criaste na perfeição..
ResponderEliminarAdorei! :)
Bem, assustadoramente... envolvente :)... quase perdi o fôlego a ler :)
ResponderEliminarParabéns! Boa semana...
:) Parece que esta bruxinha fez mesmo magia para quem com ela se cruzou aqui no blog!!! :)
ResponderEliminarObrigada pela visita e pela força!!! :)
Moon Dreamer, está excelente!
ResponderEliminarQuem me dera andar de Metro!!! ;-)
Boa semana!
Gostei. Muito:))))
ResponderEliminarCláudia
(magnólia)
Brilhantes, as mentes das pessoas que imaginam assim! Voa muito alto a tua imaginação, e mostra-nos que tudo o que é visto de cima se torna mais bonito.
ResponderEliminarOnde pára esse metro?!!! : )
Eu bem que gostava de saber qual a linha deste metro, mas ainda não descobri. Prometo que revelo, logo que descubra!!! :)
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