segunda-feira, 3 de setembro de 2012

14º Campeonato de Escrita Criativa - Desafio #2

Passado

«Jonas,
li num dos clássicos que me acompanham em horas melancólicas que “a carruagem do passado não nos leva longe”. E foi na esperança de viajar para longe que te escondi num lugar recôndito.
Encontrei-te novamente quando, mais que escondido no sótão, estavas soterrado por memórias longínquas, que contigo reemergiram e trouxeram de volta angústias que eu pretendia definitivamente mortas.
Percorri com as mãos o teu corpinho outrora macio e o impacto das memórias que foram chegando foi avassalador. Como se cada imperfeição no teu corpo de urso de peluche fosse uma cicatriz da minha infância que jamais sarou…
As manchas descoloridas do teu pelo são vestígio das minhas lágrimas silenciosas, quando, à noite, me escondia e esperava que os gritos furiosos do meu pai e o choro da minha mãe se calassem. Agarrava-me a ti, desejando que me levasses para um mundo de fantasia. Porém apenas sabias ser o meu confidente atento.
Lembro-me dos teus olhos brilhantes, de contas de vidro negras. Mas os botões que estão no seu lugar transportam-me àquele fim de tarde em que o meu pai, novamente ébrio, te atirou contra a parede e me bateu violentamente porque eu, feliz com qualquer insignificância de criança, cantarolava pela casa, incomodando o seu descanso de homem trabalhador.
Mas são os pontos mal costurados que seguram uma perna ao teu corpinho castanho que mais me assombram, ao evocarem aquela fatídica noite, em que o meu pai, não contente com murros e pontapés, ameaçou matar-nos. Em que a minha mãe pegou em mim e fugiu daquele homem cruel. Em que, perseguindo-nos em plena rua, ele me arrebatou dos braços dela e, com esse gesto brusco, arrancou a tua pernita do corpo que eu apertava contra mim. Em que ela foi suportando uma e outra pancada até que a Polícia chegou. Finalmente!
Jonas, aos poucos o tempo foi cobrindo estas feridas com memórias mais felizes. Mas a verdade, meu único amigo de tempos difíceis, é que não consigo conviver com as recordações que me trouxeste de volta. Pertencem ao passado e é lá que devem ficar. É por isso que te escrevo esta carta de despedida, antes de te lançar no oceano. Agradeço-te por todos os desabafos que ouviste e por toda a esperança que o teu mundo de fantasia me trouxe. Mas a tua carruagem viaja rumo a nada. E eu quero rumar para longe do que já foi...»









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