sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Pecados de um homem solitário

Havia alguns anos desde que se mudara para aquela aldeia. Era oriundo de uma aldeia vizinha àquela em que morava, do outro lado da Floresta das Sombras, filho de um ferreiro. Muito novo aprendera o ofício com o pai. Desde miúdo que adorava ficar na oficina a observá-lo a trabalhar o ferro. Musculado e com o corpo suado pelo intenso calor, batendo o ferro horas e horas a fio, parecia-lhe um daqueles heróis de que falavam as lendas que os mais velhos contavam nas noites de Verão em torno de uma fogueira. Passava horas e horas agachado debaixo de uma mesa, escondido porque, por medo que se magoasse, os pais o proibiram de ir para lá.

Quando achou que tinha idade suficiente, foi o seu pai que o chamou para o acompanhar à oficina diariamente, depois da escola, e aos poucos foi ensaiando aquela que viria a ser a sua futura profissão.

Quando terminou a escola, e já tinha assumido formalmente funções como ajudante do pai, conheceu Sarah. Havia festa numa aldeia ali perto. E, como em todos os anos, sempre que haviam festas ou bailes, a população das aldeias vizinhas acorria ao evento. Uma oportunidade de ver novas gentes e respirar novos ares.

Embora um pouco contrariado, porque preferia estar a participar nos torneios com os rapazes da sua idade, numa das noites de festa a mãe pedira-lhe que assistisse consigo à dança das donzelas.

Olhava quase sem ver aquele círculo de raparigas de saias rodadas e coloridas, sempre espreitando para além delas, onde os amigos se digladiavam entre si, em lutas corpo-a-corpo, para ver quem era o mais forte das três aldeias. A força que o ofício lhe dera tornava-o um sério candidato à vitória. Mas não naquele dia.

Subitamente um par de olhos azuis chamou a sua atenção. Pertenciam a uma rapariga de longos cabelos negros, pele muito branca pintalgada por sardas e um sorriso com cintilâncias de estrelas. Assolou-o um aperto no estômago, como nunca sentira antes. Sentiu um calor subir-lhe às faces. Respondeu atabalhoadamente àquele sorriso divino, quando ela se aproximou rodeada pelas amigas. Nunca a tinha visto antes. Mas pela companhia, percebeu que morava na aldeia que ficava para lá da Floresta das Sombras.

A partir daquele dia, os seus pensamentos revolviam em torno dela. E em menos de um ano casaram e passaram a viver juntos na aldeia de Sarah.

Abriu uma oficina ao lado da pequena casa onde habitavam e rapidamente a qualidade do seu trabalho tornou o negócio num sucesso. Sarah costumava dizer que era a paixão que tinha pelo seu trabalho que atraía os clientes à oficina.

Apesar da grande quantidade de clientes, nunca conseguiu ter verdadeiros amigos na aldeia. Sentia saudades da família e dos amigos que deixara na sua aldeia natal. E, para além de Sarah, não permitia que mais ninguém entrasse. Para dentro das muralhas que ia construindo em torno de si.

Era um homem fechado e de escassas palavras. Sempre fora tímido. E cada vez mais desde que abandonara a sua casa. E ao tomar consciência do seu crescente isolamento, nasciam ciúmes da mulher, que sempre fora alegre e extrovertida. Popular entre toda a gente na aldeia. Aos poucos a vida doce que viviam desde o casamento começava a ser obscurecida por algo que nem ele sabia explicar.

Cada vez lhe agradava menos que Sarah saísse para se encontrar com os amigos. Sempre que ela regressava com novidades e histórias para contar algo dentro de si se retorcia, como que uma espiga de ira que ia crescendo. E que foi deixando de conseguir esconder.

Face às expressões de desaprovação do marido, Sarah foi reduzindo essas saídas, mas jamais abdicaria de visitar a sua família e as suas melhores amigas.

Um dia, no regresso de uma visita aos seus pais, encontrou-o sentado numa cadeira, junto à porta à sua espera. Calado levantou-se, dirigiu-se a ela, segurou-a pelos ombros gritando:
- Saíste sem me avisar, porquê? Pensei que estavas aqui e quando voltei não estavas. Fiquei preocupado. Não repitas isto, ouviste? Não repitas.

Paralisada de choque, nem conseguiu articular palavra alguma perante tamanha violência. E ele também não a deixou responder. Com mais um abanão, largou-a violentamente, fazendo-a cair no chão desamparada, enquanto lhe virava as costas e saía de casa pela porta de trás.

Sarah ficou ali, horas esquecidas. Chorando amargamente. Navegando entre a confusão, a perplexidade e a tristeza. Sem saber o que fazer.

Ele, por outro lado, fugiu a passos largos para se refugiar na floresta. Também ele estava confuso. Não conseguia perceber a sua reacção. Não entendia porque o fizera. Sabia apenas do grande amor que sentia pela mulher. Da vontade de tê-la sempre junto a si, porque ela era uma parte de si mesmo. A melhor parte. Mas sabia também do fogo incontrolável que ardia dentro de si, cada vez que ela se separava de si. Da dúvida que lhe massacrava o espírito, receando que ela gostasse mais daquelas amigas do que de si. Com medo que um dia fosse visitar os pais e não voltasse. Sabia que tais pensamentos não faziam qualquer sentido, mas isso não lhe libertava a mente. Também não compreendeu a violência da sua reacção. Estava ali, remoendo a sua angústia, à espera de Sarah quando ela chegou. Quando deu por si já a agarrava, já lhe gritava, embora o que, no fundo, sentia dentro de si fosse um imenso alívio dela ter voltado.

Quando regressou encontrou a casa fria, escura e Sarah exactamente no mesmo sítio em que a deixara. Carinhosamente pegou nela ao colo e carregou-a para o quarto, não sem antes lhe sentir a rigidez de medo nos seus braços, quando lhe tocou. Por entre palavras sinceras de arrependimento e do seu amor por si, convenceu-a de que estava segura e de que nada daquilo se repetiria.

Mas não foi verdade. À medida que o tempo passava as desesperadas reacções do marido foram crescendo de violência. Mesmo que ela tivesse reduzido as suas saídas ao máximo. Apenas ao Domingo saía para ir à missa, altura em que aproveitava para ver aqueles de quem gostava. Justificava a sua ausência com o muito trabalho que tinha, mas de um modo muito pouco convincente. E a certa altura até à missa deixou de ir.

Esta situação era observada por todos os habitantes da aldeia e era vista com maus olhos por todos. A família de Sarah tentara já chamá-lo à razão e mesmo resgatá-la daquela prisão, mas sem sucesso. Até o padre da aldeia fora tentar falar com Sarah, para fazê-la voltar ao culto. Mas com isso apenas conseguiu ser expulso da casa ao empurrão.

E Sarah, aprisionada em sua casa, e sufocada por um amor que já não conseguia entender, definhava a cada dia que passava. Pouco comia, mal falava. Limitava-se a fazer as lidas domésticas e passar o restante tempo sentada numa cadeira, junto à janela, saudosa da liberdade de outrora.

Um dia, ao chegar da oficina, não encontrou Sarah à sua espera junto à porta, como era costume. Procurou-a pela casa. Vazio. Dirigiu-se ao pequeno quintal na parte de trás da casa, e aí o seu coração estacou. Encontrou Sarah deitada no chão, inanimada. Tocou-a e o frio da pele dela congelou-o de corpo e alma. Estava morta. Junto a ela um pequeno frasco de vidro denunciava o que se passara, mas ele não quis acreditar. Do bolso do vestido da mulher espreitava um pequeno papel amarelado. Ali, na caligrafia bem desenhada de Sarah, tudo estava explicado. Isolada do mundo, aprisionada fora daquilo que já fora, consumida por um amor que a ia matando aos poucos, resolveu terminar aquela situação e pôs fim à vida.

Aquela ira que se apoderava dele, aquela violência que se libertava sem que conseguisse controlar destruiu o amor que outrora fora pura seda nas suas vidas. E foi o veneno desses sentimentos que reduziram a sua existência a uma infindável solidão amarga, que o afastou do mundo e de si mesmo.
História escrita por mim para a Fábrica de Histórias

2 comentários:

  1. Fantástico!!!

    É sempre bom perceber donde veio uma personagem e este tem pano para mangas!!!

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  2. :)
    De facto apaixonei-me por este personagem na primeira vez que o "conheci". E ando com a pontinha dos dedos a formigar, para continuar a dar-lhe vida. Aguardo um pouquinho mais de tempo e de inspiração...

    Obrigada por passar por este meu cantinho vazio!

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