sábado, 6 de março de 2010

Viver para sempre

Lera Oscar Wilde. Dorian Gray era quase da família, de tantas vezes lera a obra que conta a história deste personagem. A ideia de que um quadro podia envelhecer em seu lugar apaixonava-o. Porque queria viver para sempre. Não apenas pelo tão primitivo medo de morrer, mas por curiosidade genuína sobre o que se iria passar nos séculos vindouros.

Tomé era professor de literatura na Universidade de Lisboa. Austero. Exigente. Respeitado. Pelo menos por aquelas bandas, em que os alunos o olhavam com admiração, pelo modo como cativava os seus alunos para as obras que estudavam, pelos outros professores pelas suas próprias obras sobre literatura Inglesa, e pelos restantes funcionários da Universidade, pela sua cordialidade para com todos.

Apesar disto poucas amizades íntimas mantinha, porque, depois de o conhecerem melhor, as pessoas tendiam a afastar-se, receando as suas excentricidades.

Isto porque, desde a primeira leitura daquela obra que sonhava com o modo de tornar-se imortal. Conhecia de cor todas as lendas, mitos e contos tradicionais de vários pontos do globo que aludiam à vida eterna. Estudara todos os textos, apontamentos e manuscritos alquímicos, místicos e esotéricos sobre a procura da imortalidade. E, numa divisão de sua casa possuía mesmo um pequeno laboratório, para tentar pôr em prática as ancestrais fórmulas alquímicas para encontrar o elixir da vida longa.

Mas o acesso aos ingredientes não era fácil e, mesmo quando os conseguia obter, parecia impossível obter os resultados pretendidos com fórmulas tão vagas e pouco claras. Ainda que passasse horas em testes e ensaios. Esquecido do mundo.

Embora não fosse ainda velho, havia já vários anos que se dedicava a estas actividades, de um modo quase obsessivo, nos seus tempos livres. Era capaz de passar todo um fim-de-semana fechado no laboratório, sem sequer tomar as refeições ou dormir. E ao longo do tempo, também por causa destas actividades, acabara por se ir isolando dos amigos e família.

De tanto recusar convites para sair, ou jantar dos seus velhos amigos de infância, estes deixaram de aparecer. Os poucos resistentes, ao perceberem o tipo de trabalho a que se dedicava, acabavam por começar a olhá-lo como a um daqueles homens enlouquecidos pelo génio, e aos poucos afastavam-se também.

Nunca fora casado. Sentia o espírito demasiadamente preenchido pela sua demanda mítica, para se preocupar com questões comezinhas de mulheres. Tinha tido meia dúzia de relacionamentos que duraram mais do que uma noite. Mas ao fim de pouco tempo, entediava-se com a ignorância e falta de interesse das companheiras face ao seu tema de eleição, e acabava por deixá-las, muitas vezes sem qualquer contacto, aviso ou despedida. Simplesmente desaparecia das suas vidas.

Recentemente tinha descoberto mais um manuscrito, numa das suas demandas pela Europa. Descobrira-o em Paris, por acaso, na montra de um alfarrabista. Ainda antes de o comprar, desfolhara-o, e percebeu que tinha ali tudo o que precisava para finalmente conseguir o elixir da vida eterna. O velho dono da loja estava visivelmente alheio ao valor daquele documento, e vendera-lho a um preço inesperadamente baixo. E, desde que regressara a Lisboa, passara todo o tempo entre as suas actividades na Universidade à procura dos elementos necessários para pôr em prática aquela que lhe parecia a tentativa mais viável de concretizar o seu sonho de largos anos.

No primeiro fim de semana em que finalmente reuniu tudo o que necessitava, fechou-se no laboratório, obedecendo àquilo que era já um ritual. Fechava a porta. Abria a pequena janela junto ao tecto. Acendia as dezenas de velas que percorriam os móveis em torno de si e da bancada de trabalho que ocupava o centro da divisão. Colocava o avental imaculadamente branco, que o cobria até aos pés, e analisava o documento que lhe servia de base para o trabalho que estava a fazer. Com isto, Tomé fazia um pequeno esquema das acções que tinha que fazer em cada momento, depois do que separava e preparava todo o material de que iria necessitar. Feito tudo isto, punha mãos à obra.

Mas daquela vez, já não era apenas a curiosidade e o sonho que o moviam. Desta vez sentia uma certeza inabalável de que conseguiria alcançar o final da sua jornada. Acreditava com todo o seu ser que esta seria a sua derradeira vitória. Seria imortal.

Trabalhava freneticamente. Misturava líquidos dentro de balões de vidro. Dissolvia pós coloridos em água ou álcool, mexendo-os com uma enorme vareta. Aquecia misturas de substâncias até se fundirem. E tudo isto fazia, totalmente absorto às horas que passavam, ao mundo que o rodeava. Aquele trabalho tornara-se o único foco da sua consciência. De tal modo que segunda-feira chegou, dando lugar à terça, e nem se apercebeu de tal. Nem de que faltara durante dois dias às suas aulas na Universidade.

***

Acordou sobressaltado quando ouviu alguém bater à porta, gritando o seu nome de lá de fora. Nas primeiras cintilâncias de consciência, não percebeu onde estava, nem o que se passara. Estava estirado na poltrona da sala, com o cinto das calças desapertado e os botões da camisa desabotoados. Cobria-o uma camada de suor e, ao mexer-se, sentiu as mãos tremer com alguma violência. Levantou-se e, confuso, cambaleou até à porta. Entreabriu-a, apenas para perceber quem gritava assim.

- Professor! Finalmente. Está bem? – Era a secretária do seu departamento que falava, com um ar preocupado.
- S… Sim – balbuciou. – Mas porque é que pergunta? O que se passa?
- Professor, há já três dias que está a faltar às aulas, sem avisar. Comecei a ficar preocupada. Podia ter-lhe acontecido alguma coisa. Está bem? É que não parece com boa cara…
- Não, está tudo bem. Se calhar entretive-me tanto aqui com o trabalho, que perdi a noção do tempo. – Enquanto falava, ainda através da frincha da porta, tentava endireitar o tronco para adquirir um ar mais convincente.
- Tem a certeza de que não precisa de nada? – Perguntou a mulher, avançando mais um passo na direcção da porta, como que se convidando a entrar.
- Tenho. Obrigada pela preocupação. – Olhou o relógio – Já é tarde… Mas amanhã lá estarei. Depois reponho as aulas a que faltei. Obrigada por ter vindo.
A mulher parecia desapontada, como se esperasse entrar na casa de Tomé. Percebeu que isso não iria acontecer, pelo que se despediu e partiu.

Com um esforço de memória, Tomé tentou recordar-se do que se passara. Lembrava-se de ter o líquido, o seu produto final, pronto. Lembrava-se de o ter ingerido. E das dores lancinantes que sentiu pelas entranhas minutos depois de o ter feito. Sacudido pelas dores, e pelos espasmos que lhe percorreram o corpo, arrastou-se para a sala. E a partir daí não se lembrava de mais nada. Devia ter desmaiado.

Não sabia se o elixir dera resultado ou não. Nada no manuscrito indicava o que a pessoa sentiria ao ingerir a mágica poção. Deambulou pela casa. Foi ao laboratório percorreu o espaço inundado pelo cheiro das velas, quase todas elas apenas já meros cotos de cera, misturado com os cheiros fortes, adocicados ou acres, dos ingredientes que usara para fazer o elixir. O frio da noite que entrava pela janela fê-lo sentir um arrepio. Fechou-a.

Passou à divisão contígua da casa, a biblioteca, e fez deslizar a ponta dos dedos pelas lombadas dos livros minuciosamente alinhados nas prateleiras. Apesar de obscuridade da divisão, conseguiria identificar cada um deles pelo tacto e pela posição que ocupava nas prateleiras. Retirou a sua cópia preferida d’O Retrato de Dorian Gray. Alimentava aquele sonho desde miúdo, e agora pairava num limbo, sem saber se o alcançara ou não.

De súbito, o rasgo de uma consciência nua e fria relampejou-lhe no espírito. A sua casa estava vazia. Percorria as divisões uma por uma, na casa que era bem maior do que aquilo que uma só pessoa necessitaria, e não encontrara ninguém. Sabia que se, àquela hora, precisasse de alguém, não encontraria ninguém na cidade disposto a ajudá-lo prontamente.

Não sabia se alcançara a vida eterna ou não. Mas sabia algo que lhe fazia sentir um nó na boca do estômago. Estava completamente sozinho.
Entrou no quarto e parou em frente ao espelho. Poisando o livro na prateleira, contemplou longamente a imagem que o espelho lhe devolvia. Um homem já de meia idade, escanzelado, com aspecto doente e barba por fazer. Não se reconhecia. Como se o seu próprio “Eu”, o Tomé de antes, lhe tivesse também voltado as costas.
História escrita por mim para a Fábrica de Histórias

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