quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Solitário

Passo a passo, percorria o carreiro por entre as árvores altas e frondosas que quase não deixavam passar os raios de sol para o âmago da floresta. Naquele dia em que o sol ficara imerso nas nuvens, caminhava pela penumbra. Adorava levantar o nariz e tentar adivinhar os cheiros que o vento trazia até si. Eucalipto, pinheiro, alecrim, alfazema, jasmim, … Em grandes rajadas, o vento batia-lhe na cara, inundando-o em todos estes aromas, que o deliciavam.

Era o ferreiro da aldeia, e só aos Domingos, quando fechava a oficina, e enquanto toda a aldeia ia a missa, podia dar uma caminhada pela floresta e libertar-se de tudo o que o seu espírito ia acumulando ao longo da semana. Era o seu momento de purificação.

O destino era geralmente incerto. Caminhava sem ter planeado por ou para onde ir. Mas não corria o risco de ser perder. Conhecia a floresta como a palma da mão. Era a sua segunda casa.
Não era muito popular na aldeia. O ferreiro que se embrenhava sozinho nas matas que todos temiam. O homem que não ia à missa e chegara mesmo a maltratar o padre. Aquele que não se dava a conhecer aos vizinhos ou aos clientes da oficina. Achavam-no cheio de mistérios. Receavam-no. Mas a perfeição do seu trabalho levava-os a continuar a ir à oficina.

Naquele dia a sua caminhada tinha um destino. Procurava uma flor, rara, que sabia só crescer num recôndito lugar daquela floresta. Uma oferta especial.

Depois de mais de duas horas de caminho, chegou à beira de um precipício. Tinha que descer por ele, uns sete ou oito metros, até conseguir colher um raminho daquelas flores que brotavam das rochas. Era um homem forte e musculoso, mas isso não tornava a tarefa menos arriscada.

À medida que se preparava para descer, um relâmpago sacudiu os céus e um trovão rugiu quase ao mesmo tempo. Um pingo de chuva caiu-lhe na testa, mas nada disto o dissuadiu. Nem sequer considerava a hipótese de não conseguir terminar o que o levara ali. Começou a descer.

Um temporal de gigantescas proporções levantara-se. Mal conseguia ver através da chuva e o vento esmurrava-lhe o corpo. Cada vez que tentava colocar um pé numa fresta na rocha, sentia-se escorregar, sentia instabilidade debaixo de si. Por duas ou três vezes as suas mãos escorregaram, e por pouco não caíra. Queria chegar lá abaixo, mas naquelas condições o mais certo era morrer ao tentar fazê-lo. Conhecendo tão bem aquele sítio, sabia que um pouco mais abaixo havia uma fenda na rocha em que se poderia abrigar, e para lá se dirigiu.

O buraco era pequeno, mas suficiente para o abrigar. Ali estava seco e em segurança. Receava que uma derrocada o aprisionasse naquele sítio, mas nada podia fazer para evitá-lo. E sabia que ninguém por ali passaria, nem poderia auxiliá-lo. Não tinha meio de contactar ninguém. Restava-lhe apenas esperar. Embrulhara-se bem no casaco. Enroscara-se no fundo da pequena gruta, para conseguir manter o calor, e ali ficou. Horas e horas, porque a tempestade teimava em não passar.

Aos poucos foi caindo sobre si uma sonolência, que nem tentou combater. E sonhos agridoces povoaram o seu descanso. Viu o sorriso da sua falecida mulher. Experimentou a doçura de a ter enroscada nos seus braços. Sentiu a dor ao reviver o momento em que morrera. E acordou, sobressaltado, gritando por ela.

Espreitou para fora. Anoitecera, mas o temporal não acalmara. Sentia fome, mas nada tinha que comer, pelo que se recolheu novamente no seu refúgio. Perdera o sono. Receava aquele sonho que tantas vezes o fazia acordar em agonia. Mas a sensação de profunda tristeza e solidão que geralmente o acompanhava fora agora acicatada, e invadia-o em toda a sua intensidade, fazendo-o chorar. Horas e horas. Até adormecer novamente.

Um impertinente raio de sol penetrou na gruta e, com os seus olhos como alvo, acordou-o. Meio estremunhado, com o estômago a doer pela fome, pôs a cabeça de fora e, quando os olhos se voltaram a adaptar à luminosidade, conseguiu perceber que a Primavera passeava por ali novamente. Não sabia que horas eram, nem quanto tempo estivera ali. Mas estava na altura de sair dali.

Antes de subir, desceu. As rochas estavam ainda escorregadias por causa da chuva, mas a descida era agora mais fácil que antes. Finalmente, um tufo das flores que procurava insinuou-se por entre as rochas. Com todo o cuidado colheu-o e guardou-o na pequena bolsa que trazia à tira-colo.

Subiu e regressou a casa. Surpreendentemente rápido, para quem estava há tanto tempo aprisionado num sítio tão inóspito. Apesar da lareira ter estado apagada todo aquele tempo, sentiu um calor acolhedor ao entrar. Tinha que tomar um duche e comer qualquer coisa rapidamente, para regressar à oficina, que já devia ter aberto há um bom par de horas. Mas antes, terminar a missão que culminara na aventura do dia anterior.

Entrou no quarto e, na mesa-de-cabeceira, tinha o retrato daquela por quem ainda suspirava. Faziam naquele dia 5 anos que a perdera.
Eram para ela aquelas flores.
História escrita por mim para a Fábrica de Histórias

1 comentário:

  1. Lindo, simplesmente soberbo.
    Como podes dizer tu que não escreves nada de jeito, és uma tola, tens um potencial para descrever situações, até mesmo imaginadas, como poucos.
    Continua, adoro ler o que escreves.

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